[Texto originalmente publicado na revista Observatório Itaú Cultural, n.28 para dossiê sobre Cultura, Artes e Pandemia]
As
tecnologias de todos os tipos são moldadas por contextos históricos, sociais e
ideológicos. Não existem tecnologias neutras implementadas em vácuos sociais
assépticos: a própria ausência ou presença de um artefato abre ou restringe
possibilidades e usos. As tecnologias hegemônicas implementadas em um mundo
absurdamente desigual, fruto da interseção da supremacia branca, patriarcado e
colonialismo tendem a ser suas reprodutoras. A crise de um mundo em aparente
suspensão na pandemia nos faz perguntar: há um futuro melhor pós-pandemia com
os aprendizados que podemos acumular?
Um
trabalho duro e focado em prol da transformação social é tanto uma questão de
economia, política e ativismo quanto o é de construção de imaginários. Aquelas
são questões que vão muito além do que pensamos ser o escopo da materialidade
da tecnologia ou da ciência. São questões que tratam do que somos capazes de
imaginar sobre o possível, o impossível e o desejável.
Provavelmente
devemos deixar de lado a ideia de uma lança cortante em direção a um futuro
único e com mais e mais progresso através do domínio e subjugação da natureza.
Essa ficção ideológica subjaz as sociedades industriais e pós-industriais do
capitalismo ocidental. Ela moldou como a ciência e como a arte pensam o próprio
passado: um dos cortes mais memoráveis do cinema faz o espectador ligar a
descoberta primitiva do uso de um osso como porrete, a suposta gênese da
tecnologia, à nave espacial desbravadora do universo, suposto zênite
tecnológico da humanidade.
Mas há outras narrativas e abordagens sobre a gênese da tecnologia. A partir dos estudos da antropóloga Elizabeth Fisher, a escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin nos ensina que uma tecnologia essencial para a construção da sociedade foi subestimada nos modos hegemônicos de contar a história da humanidade e as estórias dos humanos. Le Guin lembra que “com ou antes da ferramenta que projeta energia, fizemos a ferramenta que traz energia para casa” (LE GUIN, 2017, pos. 2985) – e esta ferramenta é a aparentemente prosaica sacola.
O
recipiente, o container e demais objetos para guardar e compartilhar marcaram
um momento em que os seres humanos desenvolveram uma relação mais criativa com
o tempo e consigo mesmos. As jornadas dos heróis individualistas, porém,
historicamente não tiveram espaço para a centralidade destes artefatos. Se a
contação de histórias, o storytelling nos discursos anglicistas, é
linear com um fio narrativo que emula lanças ou flechas, só temos espaços para
a histórica única, um perigo que nos alerta também a Chimamanda Adichie (2019),
onde não há espaços para olhares feministas, africanos, indígenas,
afrodiaspóricos, decoloniais da tecnologia.
Jurema
Werneck concorda ao lembrar que a criação de satélites deslumbra, mas
tecnologias de armazenamento, compartilhamento e transporte de alimentos e
bens, foram invenções de mulheres na África nos passos essenciais de construção
da humanidade (WERNECK, 2019). Mas enviar carros para a órbita ganha mais capas
de jornais do que experiências inovadoras de segurança alimentar ou autogestão
de comunidades periféricas.
Precisamos
falar do que conseguimos, enquanto sociedades, imaginar de soluções para o
presente e o futuro sobre a relação entre tecnologia e sociedade. Evoco aqui a
ideia de imaginários sociotécnicos, que são “visões de futuros desejáveis
mantidas coletivamente, estabilizadas institucionalmente e publicamente
performadas, incentivadas por compreensões compartilhadas de formas de ordem e
vida social alcançáveis por e apoiadoras de avanços na ciência e tecnologia”
(JASANOFF, 2015, p.19)
E
quais são os imaginários sociotécnicos hegemônicos na sociedade brasileira? E
para além disto: quais são os imaginários sociotécnicos “importados” nas
tecnologias e ideologias dos outros países e culturas que vemos como referência
de onde importamos tanto as tecnologias materiais quanto as epistemologias na
produção de artefatos? O poeta e pesquisador Amiri Baraka faz uma contundente
crítica às tecnologias ocidentais em seus projetos de moldar o mundo à suas
próprias reproduções. Não são neutras pois poderiam ter seguido outros
caminhos, outros modos de interação com o humano. Se olharmos para as formas
das coisas e também para as dinâmicas sociais e culturais da tecnologia para
além de tais formas, poderemos nos libertar de seu falso determinismo. Baraka
nos lembra que a pólvora nasceu para fins medicinais, se transformou em beleza nos
fogos de artifício na China, mas se globalizou como uma ferramenta da violência.
Nos pede então que questionemos “o que as máquinas produzirão? O que
alcançarão? Qual será sua moralidade? (BARAKA, 1965, p.158).
Infelizmente, os dados históricos e
movimentações mostram que Brasil e EUA se irmanam no que Ruha Benjamin chamou
de “imaginação carcerária da tecnologia”. Para Benjamin, precisamos treinar nosso
olhar para entender o desenvolvimento tecnocientífico para além da superfície
material, observar e mapear “quem e o que é fixado no mesmo lugar –
classificado, encurralado e/ou coagido, para permitir a inovação” (BENJAMIN,
2020, p.20). As tecnologias de rastreamento e controle dos cidadãos no espaço
público e privado já estavam em crescimento, como mostram dados sobre o
reconhecimento facial para policiamento e a profusão de erros técnicos, morais
e legais (NUNES, 2019) mas a pandemia é usada como oportunidade para avançar a
normalização desta e de outras tecnologias que promovem a restrição e o
autoritarismo.
Tecnologias
do social como plataformas de compartilhamento, do valor do comum no creative
commons, do associativismo digital, movimento wiki e afins resistem para
além do que recebe visibilidade nos oligopólios da tecnologia digital do Vale
do Silício. O desencanto com a globalização tem muito a ver com essa distinção.
Se os entusiastas da internet, das línguas e do transporte globalizados
sonharam com os benefícios das trocas em redes massivas, não levaram em conta a
dinâmica de conexão preferencial que seguiu a tendência do capital (o
financeiro e o social) para acumulação e desigualdade. O coletivismo irmana
abordagens feministas e afrofuturistas sobre a tecnologia em prol de projetos
igualitários, diametralmente contra a lógica individualista da cultura de
startup onde o winner takes all nada tem de meritocracia, apenas
reprodução da capacidade de dumping dos mercados financeiros em projetos
de automatização de desigualdades para concentração de capital através de
aplicativos e plataformas.
Imaginários
tratam tanto das lentes usadas para interpretar fenômenos e ações presentes –
considerando interpretações do passado – quanto na definição de horizontes de
possibilidades. Tecnologia vai muito além de dispositivos digitais. Falar de
imaginários é falar também de inspirações e retroalimentações estéticas,
afetivas e sociais como o afrofuturismo visto “como um mecanismo para focar
discurso substanciador em táticas de produção como design especulativo estende
as fronteiras das soluções plausíveis através do engajamento” (WINCHESTER III,
2019, p.56) efetivo com quem produz, usa, inventa e reapropria as tecnologias.
Uma proposição do afrofuturismo como ligada a desenhos e produção liberatórias, como design centrado no humano, inclusividade, frameworks anti-opressivos por padrão e intenção, além da ideação de artefatos pelas comunidades (WINCHESTER III, 2019) aproxima as iniciativas dos aprendizados paradoxais das periferias locais e mundiais. De comunidades periféricas brasileiras como Paraisópolis que já usava tecnologias afetivas, digitais (como vaquinhas online e mapeamentos alternativos do espaço urbano) e políticas em seus “presidentes de rua”, responsáveis por cuidar de grupos de famílias de modo distribuído, a aplicativos como o Market Garden que conecta pequenas feirantes e agricultoras a consumidoras no interior de Uganda, as rápidas e criativas inovações com impacto na proteção de vidas não serão vistas através dos valores de high tech ou disrupção dos grandes eventos de tecnologia. Estarão mais próximas das estórias que nos dizem “o que as pessoas fazem e sentem, como as pessoas se relacionam com tudo o mais neste amplo e vasto recipiente, esta barriga do universo, este útero das coisas que foram, esta estória contínua” (LE GUIN, 2017, pos.3043) do comum, das pessoas comuns. Se rejeitarmos a centralidade do herói único, do conflito e da competição nas estórias que contamos sobre as tecnologias e o futuro, podemos pensar em um novo normal que dê o devido valor à solidariedade que reinventou tecnologias e redes durante a pandemia.
Fins
do mundo já existiram em demasia para diferentes povos, como nos mostram as
experiências da Porta do Não Retorno e o sequestro genocida através do
Atlântico e nas Américas, que construíram a base cumulativa de valor que hoje
desemboca nos oligopólios da tecnologia digital através do capital financeiro.
Aílton Krenak, ao falar do fetiche ocidental sobre a ideia de fim do mundo, diz
que se preocupa é com os brancos, uma vez que aprendeu “diferentes
manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da
criatividade e da poesia que inspirou a resistência” (KRENAK, 2019,
pos.135). Durante e pós-pandemia, nossos futuros possíveis mais igualitários
estão pendentes fundamentalmente nas alianças globais que reconheçam e se
inspirem no fato de que “as comunidades mais vulneráveis, de novo e de
novo, por gerações, ao longo de centenas de anos, criaram beleza e resiliência
na vida repetidamente” (NELSON, 2020, s.p.).
Finalizo a redação deste texto no dia em que mais um foguete de parceria público-privada dos EUA decola, alimentando a fantasia de colonização de outros planetas por um bilionário que defendeu o fim do isolamento social quando mais de 300 mil pessoas já estavam mortas pelo COVID-19 – para que suas fábricas de carro voltassem a funcionar. Não é a imaginação dos bilionários que permitirá a inovação em prol da diminuição das desigualdades. E não é o imaginário sociotécnico cartesiano, eurocêntrico, colonial e capitalista que nos salvará enquanto humanos.
Como citar?
SILVA, Tarcizio. Por outros imaginários sociotécnicos no novo normal. Revista Observatório Itaú Cultural, n.28, 2020, pp.37-41.
Referências
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São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
BARAKA, Imamu Amiri.
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p. 155-158, 1965.
BENJAMIN, Ruha. Retomando nosso fôlego: Estudos de Ciência
e Tecnologia, Teoria Racial Crítica e a imaginação carcerária. In: SILVA,
Tarcízio. Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: olhares
afrodiaspóricos. São Paulo:
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JASANOFF, Sheila. Future
Imperfect: Science, Technology, and the Imaginations of Modernity. In:
JASANOFF, Sheila; KIM, Sang-Hyun (orgs.). Dreamscapes of modernity:
sociotechnical imaginaries and the fabrication of power. Chicago (EUA): The
University of Chicago Press, 2015.
LE GUIN, Ursula K. Dancing
at the Edge of the Worlds: Thoughts on Words, Women, Places. Open
Road+Grove/Atlantic, 2017.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo.
São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.
NELSON, Alondra. Coronavirus
Crisis And Afrofuturism: A Way To Envision What’s Possible Despite Injustice
And Hardship. Entrevista concedida a Tonya Mosley, 04 de maio
de 2020. Disponível em https://www.wbur.org/hereandnow/2020/05/01/afrofuturism-coronavirus
NUNES, Pablo. Maioria dos presos por reconhecimento
facial são negros. Intercept, 21 de novembro de 2019. Disponível em https://theintercept.com/2019/11/21/presos-monitoramento-facial-brasil-negros/
WERNECK, Jurema. Entrevista ao Olabi – Encontro Mulheres
Negras Pautando o Futuro. 2019.
Disponível em https://www.facebook.com/olabimakerspace/videos/1972206733088143/
WINCHESTER III, Woodrow W. Engaging the Black Ethos: Afrofuturism as a Design Lens for Inclusive Technological Innovation. Journal of Futures Studies, 24(2), 2019.