Colonização Algorítmica da África

Talvez um dos exemplos mais cínicos do caráter predatório das grandes corporações de plataformas seja o projeto Internet.org. Lançado pelo Facebook e empresas de infraestrutura, foi ao ar em 2013 com a suposta missão de “oferecer acesso à internet e os benefícios da conectividade à porção do mundo que ainda não as tem”. Na prática tinha como objetivo realizar um verdadeiro dumping de tecnologia em países do Sul Global como Brasil, Índia, Senegal, Quênia e outros países da África, Sudeste Asiático e América Latina. O primeiro impacto é gerar oligopólios, destruindo a neutralidade de rede nos locais, pois o acesso à internet oferecido pelo grupo e seus parceiros só poderia dar acesso a um punhado de serviços e websites.

O segundo impacto, mais relevante e de longa duração, com efeitos na economia, soberania, cultura e política é a construção de sistemas de infraestrutura, acesso e software que favorecem a extração de valores através da lógica de big data e correlações algorítmicas sobre os dados das populações destes países. Apesar do projeto Internet.org ter sido rechaçado em muitos países, alguns o aceitaram e, no final das contas, representa apenas uma face mais explícita do colonialismo algorítmico exercido por inúmeros meios.

Este é o tema principal do capítulo Colonização Algorítmica da África, publicado no livro Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: olhares afrodiaspóricos.

Convidei para o livro a premiada pesquisadora etíope Abeba Birhane, pesquisadora doutoral em Ciência Cognitiva na Escola de Ciência da Computação da University College Dublin.

No capítulo, Birhane nos descreve sobre a onda de enquadramento discursivo que busca posicionar a África como fonte de dados, “coleta de dados” que estariam disponíveis em um “data-rich continent”, termos que evocam a lógica colonial removendo o indivíduo.

Na primeira parte do capítulo, Birhane cita especialmente o caso sobre como o Facebook desenvolveu, usando imagens de satélite, um mapa de densidade populacional da África. A empresa se designou como responsável e autorizada a desenvolver este projeto sem articulação com os povos da África, sem refletir sobre o que é percebido como conhecimento legítimo sobre a população do continente.

As velhas justificativas a-históricas de “fornecer ajuda humanitária” e afins são usadas, subestimando como os diferentes povos e regiões da África avaliam suas prioridades.

Ao distinguir o poder colonial tradicional e o colonialismo algorítmico, Abeba Birhane diz que:

O poder colonial tradicional busca poder unilateral e dominação sobre as pessoas colonizadas. Declara o controle das esferas social, econômica e política, reordenando e reinventando a ordem social de uma maneira que o beneficie. Na era dos algoritmos, essa dominação ocorre não por força física bruta, mas por mecanismos invisíveis e diferenciados de controle do ecossistema digital e da infraestrutura digital. O colonialismo tradicional e o colonialismo algorítmico compartilham o desejo comum de dominar, monitorar e influenciar o discurso social, político e cultural através do controle dos principais meios de comunicação e infraestrutura.

Através de relatos sobre a conferência CyFyAfrica, Birhane mostra como formadores de opinião tem reproduzido acriticamente concepções erradas sobre questões relevantes para o continente, como por exemplo vincular o terrorismo online apenas a grupos islâmicos. O trabalho dialoga autoras americanas que criticam a falsa neutralidade da tecnologia, como O’Neil, Noble e Zuboff em conversa com pensadores de países africanos como Michael Kimani e Heidi Swart.

Leia o capítulo completo no livro que pode ser comprado na editora LiteraRUA ou baixado gratuitamente em PDF.

Acompanhe Abeba Birhane no Twitter e confira vídeos no YouTube, como esta palestra sobre injustiça algorítmica e ética relacional:

Emicida, tecnologias africanas, redes sociais e tambores

Como sabemos, Emicida é rapper, compositor, cantor, empresário e inovador de sucesso. Recentemente lançou também a antologia inspirada na mixtape “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…” reunindo textos e ilustrações de dezenas de pensadores e artistas brasileiros. Não seria surpresa, então, todo seu conhecimento sobre tecnologia e sociedade presente em suas músicas.

É o que vemos aqui também em formato de ensaio. Emicida gentilmente topou o desafio de escrever o prefácio do livro Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: olhares afrodiaspóricos que acabamos de lançar. Leia a seguir:

Há alguns anos, enquanto viajávamos por países do continente africano, fui surpreendido por uma pessoa que trabalhava em nosso projeto que após dividir algumas ideias, me questionou com a seguinte sentença: “Mas o que é que África tem a ver com tecnologia?”.

Me recordei naquele momento, das primeiras páginas de “Entre o Mundo e Eu” onde Ta-nehisi Coates discorre sobre a distância entre as realidades dele e da jornalista branca com quem dialogava na TV: ela parecia estar mais longe do que o satélite que os transmitiam ao vivo para o mundo todo.

Oras, se a essência das redes sociais é a conectividade, está para nascer uma que cumpra seu papel com mais eficácia do que um tambor. Sentar-se em círculos, ouvir histórias (principalmente) dos que vieram antes e extrair os melhores sentimentos dos participantes, ressaltando como a escuta é valiosa, me parece estar anos-luz à frente do mais promissor sonho de funcionalidades facebookianas de Mark Zuckerberg.

É importante admirar o admirável e para tal, é fundamental que nossas lentes estejam limpas e não sabotem essa característica tão poderosa da capacidade humana. Culturas são lentes, é por elas que percebemos o mundo.

Tecnologia, storytelling, minimalismo e ideias que visam ampliar a percepção do que significa ser humano, não podem ser vendidas no século XXI como “invenções do vale do silício”. Ainda mais para quem criou a Tábua de Ifá, a Ayurveda, as 5 orientações de gênero de alguns povos ameríndios ou a força das Mulheres Macuas. Como diria Paulina Chiziane, “às vezes sinto que nos oferecem algo que já era nosso antes deles chegarem”. Nootrópicos vieram milênios depois do Ginseng.

Tudo o que sabemos (ou o que o hemisfério norte e  seu confiante eurocentrismo julga saber), equivale só a 4% do universo, o resto é matéria e energia escura e, falando em Energia e Matéria Escura, esse livro compartilha muito a respeito do que tem a ver a África e a tecnologia.

Leia, baixe e/ou compre o livro em http://www.literarua.com.br/livro/olhares-afrodiasporicos

Revistas acadêmicas africanas: onde encontrar?

Quantas revistas acadêmicas editadas em países africanos você já leu? O African Journals Online é uma iniciativa não-governamental criada em 1998 na África do Sul com o objetivo de otimizar a circulação da produção africana em vários campos e disciplinas.

Nas palavras dos editores do projeto, “Do mesmo modo que recursos acadêmicos online do Norte Global estão disponíveis para a África, há a necessidade de disponibilizar informação da África. Importantes áreas de pesquisa na África não são cobertas de forma adequada pelo restante do mundo. Países africanos precisam coletivamente exercer um papel no ambiente global de publicação acadêmica. Pesquisadores africanos também precisam acessar as publicações acadêmicas de seu próprio continente.”

African Journals Online

Atualmente indexa revistas de 32 países, com destaque para os que possuem inglês ou francês como línguas oficiais. Lideram em número Nigeria (222 publicações), África do Sul (96), Etiópia (30), Quênia (29) e Gana (27).  Somam mais de 500 revistas, sendo quase metade de acesso aberto. Lembre que o horror colonial fez com que a maioria desses países tenham línguas oficiais advindas de países europeus, então se você lê em inglês, francês ou português poderá se conectar a bibliografia africana com quase tanta facilidade com o que faz com materiais dos EUA ou Reino Unido. Paradoxalmente, o inglês pode ser uma ferramenta decolonial para que nos conectemos a pesquisadores de parte dos países da África.

Alguns exemplos de artigos relevantes para o público desse blog: Participation in online activation (#) campaigns: A look at the drivers in an African setting – publicado no Legon Journal of Humanities (Gana); Collaborative Networks as a Mechanism for Strengthening Competitiveness, publicado no Journal of Language, Technology & Entrepreneurship in Africa (Quênia); Protest movements and social media: Morocco’s February 20 movement, publicado no Africa Development (Senegal); Social Media: An Emerging Conundrum?, publicado no AFRREV IJAH: An International Journal of Arts and Humanities (Etiópia).

Conheça o site em www.ajol.info

Instagram como plataforma potencial de Cultura Visual alternativa na África do Sul

africa-media-image-in-the-21st-centuryLançado em 2016, o livro “Africa’s Media Image in the 21st Century: From the ‘Heart of Darkness’ to ‘Africa Rising’ (organizado por Melanie Bunce, Suzanne Franks, Chris Paterson) reúne capítulos que documentam e discutem a transformação das representações imagéticas da África fora e dentro do continente. Com foco nos países da África Sub-Saariana, os capítulos se debruçam sobre as diversas concepções de imagem, com temas como cobertura de temas pela imprensa internacional, particulares de veículos afro-diaspóricos, a saliência de histórias “humanitárias” em detrimento de outras narrativas e diversos outros temas.

O capítulo Instagram as potential platform for alternative Visual Culture in South Africa, de Danielle Becker, vai tratar da desigualdade que persiste no acesso a educação e divulgação artísticas na África do Sul como um fator agravante e mantenedor de imagens”Afro-pessimistas” produzidas por olhares dissociados da experiência e histórias particulares dos países africanos.

Becker analisa, então, como os instagrammers sul-africanos se apropriam do Instagram como um ambiente para criar audiências e contornar as barreiras institucionalizadas a suas produções. Quanto ao potencial democratizador das mídias sociais, acredita que

to “democratise” and create agency is something typically attributed to social media and particularly, as a form of photography or image making, to Instagram (Champion, 2012: 83). The potentially “democratic” nature of social media and of human experience in general is something that, according to Sontag, lies at the heart of photography itself: “to democratise all experiences by translating them into images” (Sontag 1977: 176) (BECKER, p.105).

A autora usou o próprio Instagram para selecionar entrevistados e solicitou também a publicação de fotografias com a hashtag #africasmediaimage. Selecionei algumas das publicações realizadas:

Uma foto publicada por Ally (@alyshanaidu) em

A utilização da plataforma pelo coletivo I See A Different You, de Soweto, é mencionada pela autora como uma atividade com ligações diretas a conceitos explorados pela curadoria em espaços tradicionais de arte. No vídeo abaixo podemos desfrutar de uma matéria sobre o trio:

Os coletivos e eventos criados para reunir instagrammers do país foram observados também pela pesquisadora, tais como Instagram_SA, IgerSouthAfrica. Finaliza o artigo concluindo que a plataforma, entre outras, tem sido utilizada para combater visões imagens hegemônicas do Norte global:

“Despite the still limited access to smartphone technology and affordable internet, the use of Instagram as a device for the dissemination of images has the potential to broaden access to Visual Culture in South Africa as it positioned outside of dominant discourses that privilege media from the global North.”