Formas Contemporâneas de Racismo e Intolerância nas Redes Sociais

O documento Formas Contemporâneas de Racismo e Intolerância nas Redes Sociais foi publicado pelo Dr. Luiz Valério P. Trindade, como um dos resultados de seu doutorado na University of Southampton (Reino Unido). O documento traz informações sobre o racismo nas mídias sociais e recomendações de políticas públicas direcionadas a juventude, autoridades governamentais, legisladores e as próprias empresas de mídias sociais.

Merece destaque o mapeamento de quais os “gatillhos” para movimentos articulados de ódio racista. Os itens impressionam pela crueldade:
a. expressar discordância com algum post ou comentário anterior de cunho negativo contra Negros;
b. evidência de engajamento com profissões consideradas mais ‘nobres’ e de prestígio (por exemplo: medicina, jornalismo, direito, engenharia, etc.);
c. relacionamento interacial;
d. exercer posição de liderança ou bem-sucedida em programa de televisão ou até mesmo como convidada de honra;
e. desfrutar de viagens de férias no exterior (sobretudo em países localizados no Hemisfério Norte);
f. utilizar e/ou enaltecer a adoção de cabelo cacheado natural estilo Afro;
g. vencer concurso de beleza; e
h. rejeitar proposta de relacionamento afetivo.
Trindade também fala, entre outros itens, do Efeito Eco Infinito, no qual posts antigos, de até mais de 03 anos, continuam a reverberar por negligência das plataformas.
Saiba mais sobre o trabalho de Trindade em https://soton.academia.edu/LuizValerioTrindade

Pensando Raça a partir da Teoria da Informação: a diferença que faz diferença

Praticamente qualquer aluno meu já me viu citar a frase “informação é a diferença que faz diferença”. Atribuída ao matemático Gregory Bateson, é um ótimo modo de debater a distinção entre dados e informação antes de chegar aos conceitos da pirâmide DIKW (Data, Information, Knowledge e Wisdom). O que Bateson quis dizer é que informação é uma observação que faz diferença para algum “objetivo” ou em termos de “efeitos” possíveis. Em sala de aula, uso o exemplo das cores das camisas e número de notebooks. As cores das roupas dos alunos podem compor uma “diferença” observável. Posso contar a distribuição das cores. O mesmo acontece com o número de notebooks. Mas, enquanto professor, somente esta segunda diferença “faz diferença” para meus objetivos: a partir do número de notebooks em sala posso planejar melhor as atividades práticas. As cores das roupas não são informação relevante pra mim. Por outro lado, podem se tornar informação em algum exemplo sobre análise cultural e moda (ex: anti-esquerdismo diminuiu o uso de vermelho? cariocas usam mais cores que paulistas?).

É a partir desta famosa frase do Gregory Bateson que o pesquisador Syed Mustafa Ali (Open University) inicia o artigo Race: The Difference that Makes a Difference publicado na tripleC em 2012. O autor busca entender as interseções das disciplinas da Teoria Racial Crítica e da Teoria Crítica da Informação e como elas tem abordado a questão.

Quanto às múltiplas áreas da Teoria da Informação, o autor resgata diferentes abordagens, sobretudo as colaborações do filósofo Luciano Floridi em torno da filosofia da informação, que se debruça sobre tópicos, métodos e teorias do campo para estudar suas definições e colaborações. Mais recentemente, a perspectiva das ciências sociais como o trabalho de Scott Lash e Christian Fuchs (autor também de Social Media: A Critical Introduction) trazem panoramas críticos de classe, gênero e raça mas, segundo Ali, priorizando a primeira a partir de frameworks neo-Marxistas.

A colaboração da Teoria Racial Crítica, então, é essencial para a questão de pesquisa proposta. Depois de citar a crescente re-leitura informada por discurso crítico sobre raça de filósofos pós-Iluminismo a partir do trabalho de Emmanuel Chukwudi Eze nos últimos 20 anos, Ali chega à conclusão de que a perspectiva informacional não tem sido realizada. Quando é realizada, tende a ser de um olhar mais sociológico do que filosófico, em itens como: a) exclusão digital; b) representação e relações de poder em ambientes online; c) o uso de tecnologias digitais para agendas de supremacistas brancos; e d) contribuições africanas e afro-americanas à teoria dos sistemas e cibernética.

 

Mas qual a colaboração que Teoria dos Sistemas e Teoria da Informação podem trazer ao entendimento sobre raça, racismo e processos de racialização?

A proposta que se aproxima do que o Mustafa Ali procura seria, para o autor, a formulação de racismo oferecida por Fuller Jr.:

“Um sistema de pensamento, discurso e ação operado por pessoas que se classificam como “brancas” e que usam engano, violência e/ou ameaça de violência para subjugar, usar e/ou abusar de pessoas classificadas como “não-brancas” sob condições que promovam a falsidade, injustiça e incorrigibilidade em uma ou mais áreas de atividade, para o fim último de manter, expandir e/ou refinar a prática da supremacia branca (racismo)” (1984, 301)

Na visão de Fuller Jr. racismo equivale a supremacia branca e é um sistema global composto de 9 áreas principais de atividades ou sub-sistemas: economia, educação, entretenimento, trabalho, lei, política, religião, sexo e guerra. Para Ali, a colaboração de Fuller Jr. é uma formulação que é orientada para raça de forma radicalmente alternativa a outros pensadores críticos como Giddens, Bourdieu e Habermas.

Em seguida, as definições de Teoria Racial Crítica e Teoria Crítica da Informação são vinculadas para propor uma abordagem hermenêutica reflexiva sobre raça e informação. Quanto ao termo informação, polissêmico, Ali referencia von Bayer para explicar que informação pode ser vista de forma dual tanto como inform-ação quanto in-formação. No primeiro sentido, se refere à transmissão de significados e no segundo se refere à transmissão de forma, que pode ser configuração, ordem, organização, padrão, estrutura ou relacionamento. Neste sentido, a circulação de alguns padrões de pensamento no mundo pode ser vista como informação, tal como a ideia de hierarquia racial, discriminação e dominação associadas à diferença racial.

Assim, é possível ver raça como sistema e como processo. Como sistema, Ali cita Charles Mills para afirmar que racismo pode e de fato existe em potência puramente estrutural, isto é, em termos de relações de poder incorporadas diferencialmente que não são sempre explicitamente intenacionais então não são dependentes de consciência para a continuidade de sua existência. Assim, a ideia de “contrato racial” proposta por Mills pode ser vista como:

that set of formal or in-formal agreements or meta-agreements (higher-level contracts about contracts, which set the limits of the contract’s validity) between the members of one subset of humans, henceforth designated by (shifting) “racial” (phenotypical/genealogical/cultural) criteria C1, C2, C3… as “white”, and coexten-sive (making due allowance for gender differentiation) with the class of full persons, to categorise the remaining subset of humans as “nonwhite” and of a different and inferior moral status

Barnor Hesse é a referência citada a seguir para falar de raça como processo. Para Ali,  mais do que estar correlacionado com a presença (ou ausência) de marcadores materiais no corpo,

“racialization [is] embodied in a series of onto-colonial taxonomies of land, climate, history, bodies, customs, language, all of which became sedimented metonymically, metaphorically, and normatively, as the assembled attributions of race”

Deste modo, a perspectiva consegue dar conta dos processos pelos quais racialização acontece nas interseções com contextos e projetos político-econômicos de poder em cada período, como o acirramento do ódio contra islâmicos nos EUA nos últimos 30 anos. Por fim, o artigo enfatiza a importância dessa aproximação entre as áreas da ciência da informação e da teoria racial crítica para abordar os processos de resgate de argumentos e ideais biológicos do conceito de raça graças a biometria, barateamento de testes genéticos e afins.

Para saber mais sobre o trabalho do Syed Musfata Ali, acompanhe suas páginas na Open UniversityResearchGate  ou confira a palestra abaixo:

Os Riscos dos Vieses e Erros na Inteligência Artificial

O relatório An Intelligence in Our Image – The Risks of Bias and Errors in Artificial Intelligence foi lançado em 2017 pela RAND Corporation com o objetivo de lançar luz sobre vieses e erros na inteligência artificial e pontuar a relevância do debate sobre o tema. Foi escrito por Osonde Osoba, Doutor em Engenharia, e William Welser IV, Mestre em Finanças, ambos analistas da RAND.

O texto é estruturado em quatro capítulos: Introdução; Algoritmos: definição e avaliação; O Problema em Foco: fatores e remediações; Conclusão. Na introdução e parte inicial do segundo capítulo, os autores revisam histórico, definições e nuances dos principais tipos de “agentes artificiais” (conceito que engloba a junção de inteligência artificial em algoritmos efetivamente aplicados em sistemas decisórios). Sublinham em interessante trecho a opacidade dos sistemas algorítmicos com exemplos clássicos como a Google Flu Trends, crise financeira de 2008 e outros desastres em gestão pública.

Com a abundância de dados na “era do big data”, entretanto, a emergência dos sistemas de machine learning traz o debate para os modos pelos quais são construídos e suas vulnerabilidades quanto ao datasets de treino, etapa essencial mas comumente deixada de lado (e pouquíssimo debatida).

“Learning algorithms tend to be vulnerable to characteristics of their training data. This is a feature of these algorithms: the ability to adapt in the face of changing input. But algorithmic adaptation in response input data also presents an attack vector for malicious users. This data diet vulnerability in learning algorithms is a recurring theme.”

Partindo de casos documentados por Batya Friedman e Nissenbaum 22 anos atrás em Bias in Computer Systems, os autores trazem casos contemporâneos de redlining e até discriminação baseada em proxies de raça (como nomes tipicamente afro-americanos), chegando ao conceito de scored society de Citron e Pasquale.

they mean the current state in which unregulated, opaque, and sometimes hidden algorithms produce authoritative scores of individual reputation that mediate access to opportunity. These scores include credit, criminal, and employability scores. Citron and Pasquale particularly focused on how such systems violate reasonable expectations of due process, especially expectations of fairness, accuracy, and the existence of avenues for redress. They argue that algorithmic credit scoring has not reduced bias and discriminatory practices.

O relatório cita então trabalhos de Solon Barocas e Helen Nissenbaum que argumentam firmemente que o uso de big data para alimentar algoritmos não os torna mais neutros e justos, mas justamente o contrário. Além disto, os cuidados comumente empregados é esconder campos “sensíveis” nos dados em algoritmos de aprendizado, como raça e gênero. Porém, diversos estudos já mostraram que estas variáveis podem ser descobertas implicitamente e inseridas nos modelos para classificação discriminatória.

Em algumas áreas como vigilância e segurança pública, a aplicação inadequada de algoritmos e aprendizado de máquina podem ser fatais. Como demonstra trabalho da ProPublica, um sistema de “avaliação de risco criminal” que tinha como objetivo prever reincidência criminal errou de forma criminosa e racista. Réus negros estiveram sujeitos em dobro a serem classificados erroneamente como potenciais reincidentes violentos, enquanto réus brancos efetivamente reincidentes foram classificados erroneamente como de baixo risco 62.3% mais frequentemente que réus negros.

Departamentos de polícia tem usado algoritmos também para decidir onde e como alocar recursos de vigilância, para direcionar policiamento “preditivo”. Porém, a lógica inerente ao sistema tende a gerar mais erros e discriminação. O gráfico abaixo é uma simulação feita pelos autores sobre um hipotético sistema que aloca mais vigilância policial em uma determinada área ou grupo demográfico, por alguma decisão inicial no setup do sistema. Poderia ser, por exemplo, a série histórica de dados (uma região periférica que tenha histórico maior de crimes recebe mais vigilância inicialmente). No padrão destes sistemas de alocação, a vigilância maior nesta área vai crescentemente direcionar mais vigilância pois mais dados de crime serão gerados nesta área por causa, justamente, da vigilância. E nas interseções de classe, raça, país de origem e afins, esta dinâmica aumenta a desigualdade continuamente, criminalizando e piorando as condições das populações que inicialmente possuíam alguma desvantagem econômica ou de status.

No terceiro capítulo, os autores resumem os principais tipos de causas dos problemas e possíveis soluções. Sobre os vieses, relembram que um agente artificial é tão bom quanto os dados a partir dos quais aprende a tomar decisões. Uma vez que a geração de dados é um fenômeno social, está repleta de vieses humanos. Aplicar algoritmos tecnicamente corretos a dados enviesados apenas ensina os agentes artificiais a imitar e intensificar os vieses que os dados contêm. Outro ponto dos vieses é que os julgamentos nas esferas sociais e morais são difusas, raramente são critérios simples ou binários.  Quanto aos fatores técnicos, apontam problemas como disparidade de amostragem, adaptação e hacking social dos sistemas e variáveis sensíveis inferidas dos dados.

Mas, como combater todos estes problemas? O relatório também aponta alguns caminhos possíveis.

a) Algoritmos de Raciocínio Causal – os autores citam casos na Suprema Corte de uso de métodos quantitativos empíricos para ilustrar a desproporção de penas capitais no estado da Georgia (EUA), nos quais foram contestadas as relações causais. Algoritmos devem ser auditados quanto suas pretensões de fatores causais nas decisões – uma posição necessária uma vez que há defensores do poder da correlação no contexto do big data (o argumento de que o volume de dados seria suficiente para direcionar escolhas).

b) Literacia e Transparência sobre Algoritmos – combater vieses algoritmos passa também por um público educado a ponto de compreender os mecanismos pelos quais as desigualdades e injustiças podem ser geradas por sistemas mal construídos. Transparência informada e clara sobre os algoritmos presentes em plataformas de comunicação, educação e jurídicas pode avançar ainda mais o papel dos usuários em questionar, criticar e debater os sistemas.

c) Abordagens de Pessoal – Identificar os vieses e erros sistêmicos em algoritmos requerem não apenas conhecimento computacional, matemático e estatístico, mas também exposição à questionamentos e reflexões sobre questões da sociedade e políticas públicas. Frequentemente, entretanto, os criadores ou detentores das plataformas, sistemas e algoritmos não foram treinados ou expostos a formação sobre ética, sociologia ou ciência política.

d) Regulação – por fim, o papel de organismos regulatórios do estado e sociedade civil são essenciais e devem ser impulsionados pelo interesse da sociedade e campo acadêmico. Os autores apontam que a auditoria de algoritmos pode ser complexa tecnica, social e mercadologicamente. Entretanto, apoiam a proposta de Christian Sandvig de olhar não para as minúcias e tecnicalidades internas dos agentes artificiais, mas sim para as consequências de seus resultados, decisões e ações:

Certain audit types ignore the inner workings of artificial agents and judge them according to the fairness of their results. This is akin to how [ we often judge human agents: by the consequences of their outputs (decisions and actions) and not on the content or ingenuity of their code base (thoughts).

Para finalizar, mais uma dica de conteúdo. O pequeno vídeo abaixo é uma palestra de Osonde Osoba no TEDx Massachussets de dezembro de 2017. Osoba fala sobre os desafios de “tornar inteligência artificial justa”.

Confira mais trabalhos de Osoba em https://scholar.google.com/citations?user=w5oYjbYAAAAJ

Algoritmos de Opressão: como mecanismos de busca reforçam o racismo

Algoritmos e plataformas não são neutros. São construídos de modo que algumas visões de mundo, ideologias e pontos de vista se destacam e impõem-se, seja de forma intencional ou não. Apesar de estarmos em 2018 e centenas de pesquisadores, desenvolvedores e profissionais destacarem isto, a plataformização da mídia e do capitalismo através de empresas como Google, Facebook, Uber, AirBnB e similares surfa (e alimenta) a onda do individualismo, livre mercado e endeusamento estúpido da “tecnologia” para argumentar justamente o contrário: que seriam ambientes neutros por serem, justamente, criados com mecanismos de automatização de decisões livres da interferência humana.

Pesquisadores sérios e alguns segmentos da população como, por exemplo, mulheres negras, não podem se dar ao luxo de ignorar impacto e vieses dos algoritmos. Nesta interseção, a pesquisadora e professora Safiya U. Noble nos presenteou com a indispensável publicação de Algorithms of Oppression: how search engines reinforces racism lançado oficialmente neste mês de fevereiro de 2018. é Ph.D. pela University of Illinois, professora na University of Southern California (USC), previamente tendo ensinado também na UCLA, além de ser co-fundadora do Information Ethics & Equity Institute. Também é sócia de empresa focada em ciência de dados e pesquisa, a Stratteligence. Antes desse livro, co-editou “The Interesectional Internet: Race, Sex, Culture and Class Online” e “Emotions, Technology & Design”.

Em Algorithms of Oppression: how search engines reinforces racisma autora apresenta os resultados de ampla pesquisa sobre algoritmos e representação de determinados grupos, sobretudo mulheres e garotas negras no Google. A autora abre o primeiro capítulo, “A Society, Searching”, relembrando a campanha circulada pela UN Women que usou telas reais do recurso “Autocompletar” do buscador Google para mostrar como o sexismo e misoginia são representados pelas sugestões reais.

A campanha é o gancho para começar a discussão sobre a relevância e utilidade destes recursos como fortalecedores dos comportamentos que representam. Em seguida, a autora traz mais exemplos sobre representações de mulheres a partir de buscas tão simples quanto “black girls”, “why are women so” ou “why are Black people so” para mostrar como mecanismos de acesso a informação privilegiam pontos de vista de posições de poder – por exemplo, a hiperssexualização das garotas negras nos resultados é fruto de padrões de busca por conteúdo sexual e pornográfico, desrespeitando as mulheres negras como construtoras de narrativas e conteúdos próprios. Para tratar deste problema de pesquisa, Noble propõe a aplicação de uma abordagem com método e epistemologia feminista ao citar Sandra Harding, que diz que “Definir o que é necessário em termos de explicação científica apenas da perspectiva da experiência de homens brancos burgueses leva a compreensão parcial e até perversa da vida social”.

O segundo capítulo “Searching for Black Girls” traz diversos estudos de caso sobre representação de minorias políticas nos resultados da Google, para buscas como “black girls”, “latina girls”, “asian girls” etc.  A tela abaixo é inclusa no livro e mostra como os resultados para “black girls” oferecem uma representação pornográfica de meninas negras nos resultados.

Noble critica o uso puramente comercial, pela Google, de iniciativas como Black Girls Code, que não se reflete na melhoria de práticas na empresa de tecnologia ou na contratação minimamente representativa de profissionais negros. A distribuição de profissionais em empresas como a Google, Facebook e outras gigantes da tecnologia não representam nem de longe a distribuição de gênero e raça no país.

É especialmente relevante o fato de que a Google não só contrata engenheiros e cientistas da computação de forma enviesada, como também não constrói cargos e departamentos direcionados a tarefas de otimização da oferta de mídia quanto a diversidade cultural e respeito à humanidade dos seus clientes. Não são práticas novas, apesar das embalagens do Vale do Silício, como Noble demonstra ao fazer ligações destas representações ao histórico de construção de categorias raciais discriminatórias com fins de dominação. É imprescindível, então, adereçar a opacidades das tecnologias que regem as trocas comunicacionais:

“The more we can make transparent the political dimensions of technology, the more we might be able to intervene in the spaces where algorithms are becoming a substitute for public policy debates over resource distribution – from mortgages to insurance to educational opportunities”

O terceiro capítulo trata da representação de pessoas e comunidades na web em resultados de busca, especialmente o caso de sites de notícias falsas criadas por racistas supremacistas brancos nos EUA. Usando o exemplo de termos como “black on white crime”, a autora mostra como os resultados melhor rankeados levam a sites com dados falsos e cheios de discurso de ódio, com SERPs (“search engine results page”, termo usado geralmente para se referenciar à primeira página) que geram receita para a organização.

O quarto capítulo se debruça sobre ações realizadas por grupos e indivíduos para se proteger dos malefícios dos vieses dos mecanismos de busca e do registro ilegal ou antiético de dados. A partir de casos famosos como o IsAnyoneUp (site que hospedava ilegalmente “pornô de vingança”), a autora mostra correlatos relacionados à perfilização de indivíduos em categorias criminosas. Sites como UnpublishArrest e Mugshots cobram para retirar fotos de fichamento (“mugshots”) divulgadas amplamente na internet, que prejudicam indivíduos tanto culpados quanto inocentes. Como dados mostram, minorias étnicas são presas e fichadas de forma errônea e/ou abusiva com muito mais frequência nos EUA, o que leva a morosidade (4 a 6 semanas, quando acontece) de tentativas de “limpar” resultados de busca um mecanismo de intensificação da violência contra as minorias. O “direito ao esquecimento”, tema que já tratamos aqui no blog a partir de Mayer-Schonberger, é explorado a partir do pensamento de autores como Oscar Gandy Jr., mostrando alternativas para a materialização de aspectos negativos da ultra-racionalização enviesada da sociedade.

O fechamento deste capítulo tenta enfatizar a importância da retomada da transparência sobre decisões quanto a construção de índices e sistemas de informação:

In addition to public policy, we can reconceptualize the design of indexes of the web that might be managed by librarians and info rmation institutions and workers to radically shift our ability to contextualize information. This could lead to significantly greater transparency, rather than continuing to make the neoliberal capitalist project of commercial search opaque.

O quinto capítulo, então, parte para imaginar o “Future of Knowledge in the Public” a partir de uma revisão crítica sobre o histórico de problemas de classificação de temas, pessoas e grupos em repositórios de informação. Até muito recentemente categorias como “Jewish Question”, “Yellow Peril” eram usadas no sistema de classificação da Biblioteca do Congresso nos EUA, que estabelece os padrões seguidos no país. A dominação cultural sobre minorias é estruturada e materializada em códigos de enquadramento de estudos, literatura e pensamento sobre a sociedade de um modo que direciona as interpretações e desdobramentos possíveis. Sistemas de informação não são objetivos e não podem ser vistos dessa forma. Noble propõe seguir as recomendações do prof. Jonathan Furner para se aplicar Teoria Racial Crítica a estudos de informação, através de procedimentos como:

  •  Aceitação, pelos criadores dos sistemas, que os vieses existem e são resultados inevitáveis dos modos pelos quais são estruturados;
  • Reconhecimento que a aderência a uma política de neutralidade contribuir pouco para a erradicação dos vieses e pode, na verdade, estender suas existências;
  • Construção, coleta e análise de expressões narrativas de sentimentos, pensamentos e crenças de usuários de populações racialmente diversas dos esquema de classificação.

Buscando discutir como encontrar informação “culturalmente situada” na web, a autora explica o valor e potencial de alteridade de sites e buscadores focados em minorias como Blackbird (www.blackbirdhome.com),as BlackWebPortal (www.blackwebportal.com), BlackFind.com (www.blackfind.com), Jewogle (www.jewogle.com), Jewish.net (http://jewish.net/), JewGotIt (www.jewgotit.com) e  Maven Search (www.maven.co.il).

No sexto e último capítulo, “The Future of Information Culture”, Noble critica o monopólio da informação e o papel de organismos regulatórios como a FCC (Federal Communications Commission) nos EUA. Discutir o papel de organizações de mídia cada vez mais concentradas é uma questão de políticas públicas. A autora mostra, através da revisão de várias decisões judiciais, como os possíveis malefícios desta concentração tem impactos que são materializados em casos “extremos” ao mesmo tempo que influenciam a sociedade como um todo. A insistência de enquadrar ecossistemas da Google, Facebook e afins como “neutros”, como se não tivessem responsabilidade tais como organizações de mídia e imprensa também é endereçada pela autora. Para que a internet seja de fato uma fonte de oportunidades para as pessoas de forma democrática, os modos pelos quais suas principais propriedades são construídas deve estar sob princípios de transparência e acontabilidade.

Assim como a diversidade no Vale do Silício ter diminuído ao invés de aumentado nos últimos anos, a desigualdade econômica entre famílias brancas, negras e hispânicas cresceu. Segundo dados da Federal Reserve, o patrimônio líquido de famílias brancas era cerca de 10x o de famílias negras.

A autora traz as colaborações da pesquisa sobre exclusão digital para detalhar como aspectos econômicos, educacionais, culturais são materializados em três pontos principais de desigualdade quanto a tecnologia: acesso a computadores e softwares; desenvolvimento de habilidades e treinamento; e conectividade à Internet, como banda larga.

Por fim, como diz de forma “a desigualdade social não será resolvida por um app”. A nossa atual confiança excessiva nas tecnologias e auto-regulação de mercados esconde os impactos e decisões feitas dia a dia por profissionais, designers, engenheiros, cientistas e executivos de negócio que pecam por intenção ou omissão quanto à efetiva liberdade de expressão e uso da web. Somente a associação intencional, inteligente e diversa de pessoas de diferentes backgrounds profissionais e culturais engajadas em tornar o mundo um lugar melhor pode salvar a internet. As concepções neoliberais sobre mercado, comunicação e democracia vão contra este objetivo, como aponta em:

New, neoliberal conceptions of individual freedoms (especially in the realm of technology use) are oversupported in direct opposition to protections realized through large-scale organizing to ensure collective rights. This is evident in the past thirty years of active antilabor policies put forward by several administrations47 and in increasing hostility toward unions and twenty-first-century civil rights organizations such as Black Lives Matter. These proindividual, anticommunity ideologies have been central to the antidemocratic, anti-affirmative-action, antiwelfare, antichoice, and antirace discourses that place culpability for individual failure on moral failings of the individual, not policy decisions and social systems.

É possível ver uma palestra de Safiya U. Noble realizada no Personal Democracy Forum 2016 que cobre as ideias principais da publicação:

Saiba mais sobre o livro e o trabalho da autora em seu site: https://safiyaunoble.com/research-writing/

Projeto de Joy Buolamwini (@jovialjoy) combate discriminação nos algoritmos

Joy Buolamwini é mestre por Oxford e doutoranda e pesquisadora no MIT e, a partir de sua pesquisa motivada por experiências pessoais de discriminação através de vieses dos algoritmos, ela lançou os projetos Coded Gaze e Algorithmic Justice League, para combater os problemas causados pela tecnologia e algoritmos falsamente objetivos. Ela ainda é co-fundadora do Myavana Hair, sistema de recomendação de produtos, serviços e expertise para cada tipo de cabelo. Em novembro, deu uma palestra no TEDxBeaconStreet sobre o tema. Pode ser vista no vídeo abaixo, mas infelizmente ainda não há legendas em português. Então traduzi, em seguida, a transcrição oferecida pelo próprio website, para facilitar a compreensão:

Tradução da Transcrição

0:12

Olá, eu sou a Joy, uma poeta do código, com uma missão de enfrentar uma força invisível que está crescendo, uma força que eu chamei de “o olhar codificado”, meu termo para vieses algorítimicos.

0:26

Viés algorítmico (algorithmic bias), assim como o viés humano, resulta em injustiça. Entretanto, algoritmos, como vírus, podem compartilhar vieses em uma escala massiva com muita velocidade. Viés algorítmico pode também levar a experiências excludentes e práticas discriminatórias. Deixe-me mostrar o que quero dizer.

0:47

(Vídeo) Joy Boulamwini: Oi, câmera. Eu tenho um rosto. Você pode ver meu rosto? E meu rosto em óculos? Você pode ver o rosto dela. E o meu rosto? Agora tenho uma máscara. Você pode ver minha máscara?

1:07

Joy Boylamwini: Então, como isto aconteceu? Por que estou em frente a um computador com uma máscara branca, tentando ser detectada por uma câmera barata? Bem, quando não estou lutando contra o “olhar codificado” como uma poeta do código, eu sou uma estudante de pós-graduação no MIT Media Lab, e lá eu tenho a oportunidade de trabalhar em todos os tipos de projetos fantásticos, incluindo o Aspire Mirror, um projeto que eu fiz para projetar máscaras digitais em meus reflexos. Então, de manhã, se eu quiser me sentir poderosa, posso colocar uma máscara de leão. Se quero me sentir pra cima, posso colocar uma citação. Então, usei software genérico de reconhecimento facial para construir o sistema, mas descobri que era muito difícil de testá-lo a não ser que eu usasse uma máscara branca.

1:55

Infelizmente, já passei por este problema antes. Quando eu era graduando na Georgia Tech estudando Ciência da Computação, eu trabalhava com robôs sociais e uma de minhas tarefas era fazer um robô brincar de peek-a-boo, uma brancadeira simples onde as pessoas brincando cobrem sua própria face e a descobrem dizendo “Peek-a-boo!”. O problema é: peek-a-boo não funciona se eu não posso ver você, e meu robô não conseguia me ver. Mas eu emprestei o rosto de minha colega de quarto para fazer o projeto, submeti o trabalho e percebi, sabe de uma coisa, outra pessoa vai resolver este problema.

2:32

Não muito tempo depois disto, eu estava em Hong Kong para uma competição de empreendedorismo. Os organizadores decidiram levar os participantes a um tour pelas statups locais. Uma das startups tinha um robô social e eles decidiram fazer uma demonstração. A demo funcionou com todo mundo, exceto comigo, como você pode adivinhar. Não conseguiu detectar meu rosto. Perguntei aos desenvolvedores o que estava acontecendo e disseram que também estavam usando o mesmo software genérico de reconhecimento facial. Do outro lado do mundo, aprendi que o viés algorítmico pode viajar tão rápido quanto baixar alguns arquivos da internet.

3:14

Então o que estava acontecendo? Por que minha face não estava sendo detectada? Bem, precisamos nos debruçar como damos visão às máquinas. Visão computacional usa aprendizado de máquina para fazer reconhecimento facial. Então funciona da seguinte forma. Você cria uma base de treinamento com exemplos de rostos. Este é um rosto. Este é um rosto. Isto não é um rosto. E ao longo do tempo, você pode ensinar um computador a como reconhecer outros rostos. Entretanto, se a base de treinamento não é diversa, qualquer rosto que se desvie da norma estabelecida será difícil de detectar, o que aconteceu comigo.

3:48

Mas não se preocupe – há boas notícias. Bases de treinamento não se materializaram do nada. Na verdade, nós criamos eles. Então há uma oportunidade para criar bases de treinamento realmente abrangentes que reflitam um retrato mais rico da humanidade.

4:03

Agora vocês viram em meus exemplos com robôs sociais como eu descobri sobre exclusão com viés algorítmico. Mas viés algorítmico também pode levar a práticas discriminatórias. Nos EUA, departamentos de polícia estão começando a usar softwares de reconhecimento facial em seu arsenal contra o crime. Georgetown Law publicou um relatório mostrando como um a cada dois adultos nos EUA – cerca de 117 milhões de pessoas – já tem seus rostos em redes de reconhecimento facial. Departamentos de polícia atualmente acessam estas redes desreguladas, usando algoritmos que não foram auditados para precisão. Mas sabemos que reconhecimento facial é falível e identificar rostos consistentemente continua sendo um desafio. Você pode ter visto isto no Facebook. Meus amigos e eu rimos toda hora vendo pessoas marcadas de forma errada em nossas fotos. Mas identificar de forma errônea um suspeito de crime não é uma piada, assim como não é infringir as liberdades civis.

5:11

Aprendizado de máquina tem sido usado para reconhecimento fácil, mas também está se ampliando além do reino da visão computacional. Em seu livro “Weapons of Math Destruction”, a cientista de dados Cathy O’Neil fala sobre o crescimento dos novos WMDs – widespread, mysterious e destructive algoritmos que estão sendo cada vez mais usados para tomada de decisões que impactam mais e mais aspectos de nossas vidas. Então quem é contratado ou demitido?  Você consegue aquele empréstico? Você consegue seguro? Você é aprovado na faculdade que queria? Você e eu pagamos o mesmo preço pelo menos produto comprado na mesma plataforma?

5:55

Instituições da lei estão começando a aplicar aprendizado de máquina para polícia preditiva. Alguns juízes usam escores de risco gerados por máquinas para determinar quanto um indivíduo vai ficar na prisão. Então realmente temos que pensar nestas decisões. Elas são justas? E o que estamos vendo é que o viés algorítmico não necessariamente leva a resultados justos.

6:19

E o que podemos fazer sobre isto? Bem, podemos começar a pensar sobre como criar código mais inclusivo e empregar práticas de programação inclusivas. Realmente começa com as pessoas. Então quem programa importa. Estamos criando times abrangentes com indivíduos diversos que podem checar os pontos cegos uns dos outros? No lado técnico, como se programa importa. Estamos adicionando equidade enquanto desenvolvemos sistemas? E, finalmente, o porquê de programarmos importa. Usamos ferramentas de criação computacional para gerar riqueza imensa. E agora temos a oportunidade de gerar ainda mais igualdade se tornarmos mudança social uma prioridade e não apenas algo secundário. E são estes os três princípios que fazem o movimento “incoding”. Quem programa importa, como programamos importa e quem programa importa

7:14

Então para ir em direção a “incoding”, nós podemos começar a pensar em construir plataformas que identifiquem vieses ao coletar as experiências das pessoas como as que eu compartilhei, mas também auditando software existente. Nós podemos começar a criar bases de treinamento mais inclusivas. Imagine uma campanha “Selfies para Inclusão” onde você e EU podemos ajudar desenvolvedores testar e criar bases de treinamento mais inclusivas. E nós podemos pensar mais conscientemente sobre o impacto social da tecnologia que estamos desenvolvendo.

7:48

Para começar este movimento de “incoding”, lancei a Liga da Justiça Algorítmica (Algorithmic Justice League), onde qualquer pessoa que se importa com equidade pode ajudar a lugar o olhar codificado. Em codedgae.com, você pode reportar viés, pedir auditorias, se tornar um testador e se juntar ao debate contínuo – #codedgaze

8:11

Então, eu te convido a se juntar a mim na criação de um mundo onde a tecnologia trabalha para todos nós, não apenas alguns de nós, um mundo onde valorizamos inclusão e centralizamos mudança social.

8:24

Obrigado.

8:25

(Aplausos)

8:31

Mas eu tenho uma questão: vocês vão se juntar a mim na luta?

8:36

Risadas

8:38

Aplausos