Algoritmos de Opressão: como mecanismos de busca reforçam o racismo

Algoritmos e plataformas não são neutros. São construídos de modo que algumas visões de mundo, ideologias e pontos de vista se destacam e impõem-se, seja de forma intencional ou não. Apesar de estarmos em 2018 e centenas de pesquisadores, desenvolvedores e profissionais destacarem isto, a plataformização da mídia e do capitalismo através de empresas como Google, Facebook, Uber, AirBnB e similares surfa (e alimenta) a onda do individualismo, livre mercado e endeusamento estúpido da “tecnologia” para argumentar justamente o contrário: que seriam ambientes neutros por serem, justamente, criados com mecanismos de automatização de decisões livres da interferência humana.

Pesquisadores sérios e alguns segmentos da população como, por exemplo, mulheres negras, não podem se dar ao luxo de ignorar impacto e vieses dos algoritmos. Nesta interseção, a pesquisadora e professora Safiya U. Noble nos presenteou com a indispensável publicação de Algorithms of Oppression: how search engines reinforces racism lançado oficialmente neste mês de fevereiro de 2018. é Ph.D. pela University of Illinois, professora na University of Southern California (USC), previamente tendo ensinado também na UCLA, além de ser co-fundadora do Information Ethics & Equity Institute. Também é sócia de empresa focada em ciência de dados e pesquisa, a Stratteligence. Antes desse livro, co-editou “The Interesectional Internet: Race, Sex, Culture and Class Online” e “Emotions, Technology & Design”.

Em Algorithms of Oppression: how search engines reinforces racisma autora apresenta os resultados de ampla pesquisa sobre algoritmos e representação de determinados grupos, sobretudo mulheres e garotas negras no Google. A autora abre o primeiro capítulo, “A Society, Searching”, relembrando a campanha circulada pela UN Women que usou telas reais do recurso “Autocompletar” do buscador Google para mostrar como o sexismo e misoginia são representados pelas sugestões reais.

A campanha é o gancho para começar a discussão sobre a relevância e utilidade destes recursos como fortalecedores dos comportamentos que representam. Em seguida, a autora traz mais exemplos sobre representações de mulheres a partir de buscas tão simples quanto “black girls”, “why are women so” ou “why are Black people so” para mostrar como mecanismos de acesso a informação privilegiam pontos de vista de posições de poder – por exemplo, a hiperssexualização das garotas negras nos resultados é fruto de padrões de busca por conteúdo sexual e pornográfico, desrespeitando as mulheres negras como construtoras de narrativas e conteúdos próprios. Para tratar deste problema de pesquisa, Noble propõe a aplicação de uma abordagem com método e epistemologia feminista ao citar Sandra Harding, que diz que “Definir o que é necessário em termos de explicação científica apenas da perspectiva da experiência de homens brancos burgueses leva a compreensão parcial e até perversa da vida social”.

O segundo capítulo “Searching for Black Girls” traz diversos estudos de caso sobre representação de minorias políticas nos resultados da Google, para buscas como “black girls”, “latina girls”, “asian girls” etc.  A tela abaixo é inclusa no livro e mostra como os resultados para “black girls” oferecem uma representação pornográfica de meninas negras nos resultados.

Noble critica o uso puramente comercial, pela Google, de iniciativas como Black Girls Code, que não se reflete na melhoria de práticas na empresa de tecnologia ou na contratação minimamente representativa de profissionais negros. A distribuição de profissionais em empresas como a Google, Facebook e outras gigantes da tecnologia não representam nem de longe a distribuição de gênero e raça no país.

É especialmente relevante o fato de que a Google não só contrata engenheiros e cientistas da computação de forma enviesada, como também não constrói cargos e departamentos direcionados a tarefas de otimização da oferta de mídia quanto a diversidade cultural e respeito à humanidade dos seus clientes. Não são práticas novas, apesar das embalagens do Vale do Silício, como Noble demonstra ao fazer ligações destas representações ao histórico de construção de categorias raciais discriminatórias com fins de dominação. É imprescindível, então, adereçar a opacidades das tecnologias que regem as trocas comunicacionais:

“The more we can make transparent the political dimensions of technology, the more we might be able to intervene in the spaces where algorithms are becoming a substitute for public policy debates over resource distribution – from mortgages to insurance to educational opportunities”

O terceiro capítulo trata da representação de pessoas e comunidades na web em resultados de busca, especialmente o caso de sites de notícias falsas criadas por racistas supremacistas brancos nos EUA. Usando o exemplo de termos como “black on white crime”, a autora mostra como os resultados melhor rankeados levam a sites com dados falsos e cheios de discurso de ódio, com SERPs (“search engine results page”, termo usado geralmente para se referenciar à primeira página) que geram receita para a organização.

O quarto capítulo se debruça sobre ações realizadas por grupos e indivíduos para se proteger dos malefícios dos vieses dos mecanismos de busca e do registro ilegal ou antiético de dados. A partir de casos famosos como o IsAnyoneUp (site que hospedava ilegalmente “pornô de vingança”), a autora mostra correlatos relacionados à perfilização de indivíduos em categorias criminosas. Sites como UnpublishArrest e Mugshots cobram para retirar fotos de fichamento (“mugshots”) divulgadas amplamente na internet, que prejudicam indivíduos tanto culpados quanto inocentes. Como dados mostram, minorias étnicas são presas e fichadas de forma errônea e/ou abusiva com muito mais frequência nos EUA, o que leva a morosidade (4 a 6 semanas, quando acontece) de tentativas de “limpar” resultados de busca um mecanismo de intensificação da violência contra as minorias. O “direito ao esquecimento”, tema que já tratamos aqui no blog a partir de Mayer-Schonberger, é explorado a partir do pensamento de autores como Oscar Gandy Jr., mostrando alternativas para a materialização de aspectos negativos da ultra-racionalização enviesada da sociedade.

O fechamento deste capítulo tenta enfatizar a importância da retomada da transparência sobre decisões quanto a construção de índices e sistemas de informação:

In addition to public policy, we can reconceptualize the design of indexes of the web that might be managed by librarians and info rmation institutions and workers to radically shift our ability to contextualize information. This could lead to significantly greater transparency, rather than continuing to make the neoliberal capitalist project of commercial search opaque.

O quinto capítulo, então, parte para imaginar o “Future of Knowledge in the Public” a partir de uma revisão crítica sobre o histórico de problemas de classificação de temas, pessoas e grupos em repositórios de informação. Até muito recentemente categorias como “Jewish Question”, “Yellow Peril” eram usadas no sistema de classificação da Biblioteca do Congresso nos EUA, que estabelece os padrões seguidos no país. A dominação cultural sobre minorias é estruturada e materializada em códigos de enquadramento de estudos, literatura e pensamento sobre a sociedade de um modo que direciona as interpretações e desdobramentos possíveis. Sistemas de informação não são objetivos e não podem ser vistos dessa forma. Noble propõe seguir as recomendações do prof. Jonathan Furner para se aplicar Teoria Racial Crítica a estudos de informação, através de procedimentos como:

  •  Aceitação, pelos criadores dos sistemas, que os vieses existem e são resultados inevitáveis dos modos pelos quais são estruturados;
  • Reconhecimento que a aderência a uma política de neutralidade contribuir pouco para a erradicação dos vieses e pode, na verdade, estender suas existências;
  • Construção, coleta e análise de expressões narrativas de sentimentos, pensamentos e crenças de usuários de populações racialmente diversas dos esquema de classificação.

Buscando discutir como encontrar informação “culturalmente situada” na web, a autora explica o valor e potencial de alteridade de sites e buscadores focados em minorias como Blackbird (www.blackbirdhome.com),as BlackWebPortal (www.blackwebportal.com), BlackFind.com (www.blackfind.com), Jewogle (www.jewogle.com), Jewish.net (http://jewish.net/), JewGotIt (www.jewgotit.com) e  Maven Search (www.maven.co.il).

No sexto e último capítulo, “The Future of Information Culture”, Noble critica o monopólio da informação e o papel de organismos regulatórios como a FCC (Federal Communications Commission) nos EUA. Discutir o papel de organizações de mídia cada vez mais concentradas é uma questão de políticas públicas. A autora mostra, através da revisão de várias decisões judiciais, como os possíveis malefícios desta concentração tem impactos que são materializados em casos “extremos” ao mesmo tempo que influenciam a sociedade como um todo. A insistência de enquadrar ecossistemas da Google, Facebook e afins como “neutros”, como se não tivessem responsabilidade tais como organizações de mídia e imprensa também é endereçada pela autora. Para que a internet seja de fato uma fonte de oportunidades para as pessoas de forma democrática, os modos pelos quais suas principais propriedades são construídas deve estar sob princípios de transparência e acontabilidade.

Assim como a diversidade no Vale do Silício ter diminuído ao invés de aumentado nos últimos anos, a desigualdade econômica entre famílias brancas, negras e hispânicas cresceu. Segundo dados da Federal Reserve, o patrimônio líquido de famílias brancas era cerca de 10x o de famílias negras.

A autora traz as colaborações da pesquisa sobre exclusão digital para detalhar como aspectos econômicos, educacionais, culturais são materializados em três pontos principais de desigualdade quanto a tecnologia: acesso a computadores e softwares; desenvolvimento de habilidades e treinamento; e conectividade à Internet, como banda larga.

Por fim, como diz de forma “a desigualdade social não será resolvida por um app”. A nossa atual confiança excessiva nas tecnologias e auto-regulação de mercados esconde os impactos e decisões feitas dia a dia por profissionais, designers, engenheiros, cientistas e executivos de negócio que pecam por intenção ou omissão quanto à efetiva liberdade de expressão e uso da web. Somente a associação intencional, inteligente e diversa de pessoas de diferentes backgrounds profissionais e culturais engajadas em tornar o mundo um lugar melhor pode salvar a internet. As concepções neoliberais sobre mercado, comunicação e democracia vão contra este objetivo, como aponta em:

New, neoliberal conceptions of individual freedoms (especially in the realm of technology use) are oversupported in direct opposition to protections realized through large-scale organizing to ensure collective rights. This is evident in the past thirty years of active antilabor policies put forward by several administrations47 and in increasing hostility toward unions and twenty-first-century civil rights organizations such as Black Lives Matter. These proindividual, anticommunity ideologies have been central to the antidemocratic, anti-affirmative-action, antiwelfare, antichoice, and antirace discourses that place culpability for individual failure on moral failings of the individual, not policy decisions and social systems.

É possível ver uma palestra de Safiya U. Noble realizada no Personal Democracy Forum 2016 que cobre as ideias principais da publicação:

Saiba mais sobre o livro e o trabalho da autora em seu site: https://safiyaunoble.com/research-writing/

9 comentários sobre “Algoritmos de Opressão: como mecanismos de busca reforçam o racismo

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  7. Nossa! Vou escrever meu TCC da Pós sobre este assunto. Gostaria muito de conseguir um exemplar do livro da Safiya U. Noble. Apesar de não ter sido traduzido para o português, é possível adquiri-lo no Brasil ?

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