Em um dos últimos dias de 2016 recebi um email de ferramenta de monitoramento contando algumas “novidades” que implementou durante o ano: possibilidade de ordenar menções, exibição de imagens das publicações e a possibilidade de retirar marcação de sentimento. Olhei novamente para o calendário para me certificar que estava realmente chegando em 2017 e não em 2009.
Acompanho o mercado de monitoramento de mídias sociais há quase 10 anos e lamento dizer que a resposta para a pergunta do título do post é um sim para boa parte das ferramentas – incluindo algumas das líderes. Como falo frequentemente em aulas e publicações, o mercado de monitoramento de mídias sociais (social listening, social analytics ou outros termos, a depender do enfoque) nas áreas de comunicação cresceu sobretudo em torno de ferramentas criadas no contexto de agências publicitárias, à revelia do mercado de pesquisa de mercado propriamente dito.
Ao mesmo tempo, a pesquisa acadêmica avançava enormemente na compreensão das mídias sociais (veja o nosso estudo de 100 Fontes, por exemplo), gerando ferramentas e avanços relevantes para os envolvidos mas seguia ignorada pelo mercado publicitário.
Visualização de grafos: funcionalidade ainda rara entre as ferramentas de monitoramento de mídias sociais.
Ler recentemente um artigo que cogita se as ferramentas de social analysis estão atrasando o uso de inteligência em mídias sociais como um método de pesquisa de mercado me fez lembrar de muitos casos no mercado. Em meados de 2013, quando ainda trabalhava numa agência digital em SP, tive o estalo sobre funcionalidades de análise de redes (grafos) para qualificar ainda mais os insights em monitoramento de mídias sociais. Montei um projeto sobre a ideia (que já estava implementada em algumas ferramentas da França) e apresentei a duas das ferramentas líderes no Brasil. Ambas chamaram a ideia de “muito acadêmica”. Chocado, segui com o projeto em uma ferramenta de pequeno porte e o feedback foi excelente, sendo decisiva para a conquista de clientes entre as maiores empresas do Brasil e também o uso durante campanha presidencial. Nos anos seguintes, ferramentas líderes mundiais lançaram a funcionalidade, como Sysomos e Digimind – muitos anos depois de ferramentas acadêmicas como NodeXL, Cosmos ou Chorus (veja mais aqui).
O artigo citado, Are Social Analysis Tools Holding Back Social Media Intelligence as a Market Research Method?, foi publicado em 2016 na revista Association for Survey Computing, por Jillan Ney, profissional e pesquisadora residente em Glasgow, UK. A autora propõe que a hegemonia de empresas de desenvolvimento de ferramentas de monitoramento (um mercado de mais de USD 160 bilhões) atrapalha o desenvolvimento da inteligência em mídias sociais por uma série de motivos.
O primeiro deles é decorrente da própria dominação deste mercado por ferramentas criadas e baseadas em objetivos de marketing. Para a autora, a ênfase nestes objetivos fez com que suas aplicações principais se construíram pensando como público consumidor
professionals interpreting the data who are inexperienced in developing customer or market insight. This inexperience has directly impacted on the type of insight generated, and the quality of this insight because their inexperience fails to recognise that the marketing claims of social analysis tools are false.
Assim, o contraste entre as métricas disponíveis em ferramentas do tipo e na pesquisa de mercado são gigantescas. O direcionamento a mais e mais automatização padroniza os recursos que se curvam aos indicadores e KPIs das plataformas (Facebook, Twitter e afins) ao invés das potencialidades da compreensão do comportamento humano:
the automated share of voice in social analysis tools, compared to perceived quality, purchase intent or customer journey analysis in research terms. Many social analysis tools are also ‘black boxed’, allowing little flexibility to conduct analysis not already available in the system
Jillian Ney apresenta dois estudos para mostrar como as ferramentas devem ser usadas de modo inteligente e regido pelo rigor da pesquisa de mercado – e não o contrário. O primeiro estudo buscou entender lembrança de marca de patrocinadores em um segmento demográfico específico (18 a 24 no Reino Unido); enquanto o segundo buscou confirmar a hipótese de que a audiência de uma marca de FMCG estava ficando mais jovem e com menor poder aquisitivo. A autora descreve os passos percorridos e como usou diversas ferramentas para resolver questões de pesquisa que não são previstas pelas interfaces e funcionalidades das ferramentas tradicionais. Conclui propondo caminhos para que as ferramentas evoluam, não cedendo às pressões da lógica da automatização burra e ao convergir a experiência de profissionais de pesquisa de mercado:
To be a successful instrument for market research, the tools themselves must learn more about the research to be conducted and develop functionality and provide solutions to enhance this process. The market researcher must to have more control over the segmentation and analysis of the data; automation is good for the time poor marketers, but it does not provide the flexibility or rigour required in research.
O artigo toca em questões essenciais para o mercado e uso responsável dos dados em mídias sociais, sobretudo em tempos de concentração, e deve ser visto como uma importante adição ao debate para evolução do conhecimento baseado em dados mídias sociais de forma sustentável.