Reconhecimento Facial nos espaços públicos em Curitiba: em direção ao banimento

Espaços Públicos e Reconhecimento Facial em Curitiba

O mandato da vereadora Carol Dartora e a rede Lavits realizaram no dia 25 de agosto o evento “Espaços Públicos e Reconhecimento Facial em Curitiba”, a partir das 19h, na Sala de Videoconferência, no 3º andar do Prédio Histórico da UFPR, nas dependências do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR.

No evento foram apresentadas as características da tecnologia de reconhecimento facial e serão debatidos os riscos do emprego desta tecnologia na segurança pública e no monitoramento de espaços públicos na cidade de Curitiba, especialmente no âmbito do sistema Muralha Digital, que integra a Política Municipal de Videomonitoramento de Curitiba. Realizei uma apresentação sobre os problemas técnicos e sociopolíticos da tecnologia, em mesa com a vereadora Carol Dartora, os professores Rodrigo Firmino (PPGTU/PUCPR) e Katie Arguello (PPGD/UFPR) e os mestrandos Julia Abad (PPGTU/PUCPR) e Henrique Kramer (PPGTU/PUCPR).

#SaiDaMinhaCara – Também foi apresentada a Proposição 005.00138.2022, projeto de lei de iniciativa da vereadora Carol Dartora, que dispõe sobre a restrição do uso, pelo Poder Público, da tecnologia de reconhecimento facial em espaços públicos. A proposição faz parte da campanha #SaiDaMinhaCara, iniciativa nacional que reúne mais de 50 parlamentares de vários partidos e de todas as regiões do Brasil que apresentaram projetos pelo banimento do reconhecimento facial em espaços públicos.

Até agora, 12 estados e o Distrito Federal tiveram PLs apresentados no Brasil, seja no nível estadual ou municipal. São eles: Bahia, Ceará, Espírito Santo, Distrito Federal, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo. A iniciativa demonstra um consenso multipartidário sobre o caráter invasivo e discriminatório dessa tecnologia, principalmente quando aplicada sob uma pretensa narrativa de segurança pública.

Reconhecimento facial deve ser banido. Veja dez razões:

As tecnologias digitais baseadas em inteligência artificial para ordenação e vigilância de cidadãos no espaço público ganham mais mercado devido à evolução técnica e barateamento na última década. Vigilância e persecução de suspeitos por reconhecimento facial não é algo novo mas tem recebido mais atenção tanto por questões técnicas que aumentam o acesso a tais recursos, inclusive através de lobby das corporações de big tech, quanto pelo avanço de ideologias violentas de extrema-direita.

No Brasil, tecnologias do tipo estão sendo implementadas por governos de diferentes espectros ideológicos, como Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro para citar alguns exemplos. A principal tecnologia que busca normalizar o estado completo de vigilância potencial é o reconhecimento facial, proposta e defendida em diversos níveis do executivo e legislativo. Estudo promovido pela Intervozes mostrou que “dentre os 26 prefeitos de capitais empossados em janeiro de 2021, 17 apresentaram propostas que, de algum modo, preveem o uso das tecnologias de informação e comunicação na segurança pública”.

O compromisso público contra a tecnologia requer urgência, uma vez que quanto mais gasto público é aplicado em infraestruturas do tipo, mais seu uso é normalizado e difícil se torna o combate à sua implementação contínua e perene.

1) Reconhecimento facial e visão computacional são técnicas altamente imprecisas, em especial sobre pessoas racializadas
Reconhecimento facial e visão computacional para identificação de objetos em imagens e vídeos são tecnologias altamente imprecisas, com amplo histórico de erros com impactos violentos que desrespeitam os direitos humanos. Os frequentes erros em tecnologias do tipo e similares levaram estudiosos de vários locais no mundo a elaborarem o conceito de “racismo algorítmico” . Sobre reconhecimento facial, alguns exemplos anedotais ou de pesquisas estruturadas: softwares da IBM, Microsoft, Amazon e outros erram mais em imagens de mulheres negras; órgão estadunidense identificou que sistemas de biometria visual erram de 10 a 100 vezes mais com imagens de pessoas negras ou asiáticas; Google marca ferramentas em mão negra como arma; Instagram bloqueia anúncio mostrando favela por “conter armas” que não existem na imagem. Veja os casos na Linha do Tempo do Racismo Algorítmico.

Especificamente sobre casos de erros do reconhecimento facial para segurança pública, campo com pouquíssima transparência, há documentação de violências ocasionadas por erros vulgares por todo o mundo, como Salvador, Rio de Janeiro, Londres, Michigan etc. Em Londres, uma das poucas implementações com auditoria e pesquisa transparentes, o público foi erroneamente identificado em 96% dos casos.

2) A seletividade penal é norma nas polícias e judiciário brasileiros
A seletividade penal é norma nas polícias brasileiras, construídas desde o seu início como ferramentas de controle de populações vulneráveis e manutenção de relações de exploração e subjugação de classe, racialmente e patriarcalmente definidas. Adicionalmente, a polícia “erra” com mais frequência contra pessoas negras e pobres. Portanto, mesmo se sequer tomarmos uma posição explicitamente abolicionista, não podemos apoiar a implementação de mais mecanismos de promoção do encarceramento. Mesmo se tivéssemos tecnologias “precisas” de reconhecimento facial, tais vão contra projetos humanos de sociedade por avançar o encarceramento de pessoas, em grande parcela através de punição por crimes sem vítima.

Os dados sobre pessoas presas por reconhecimento facial no Brasil não são transparentes, mas organizações como o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania levantaram que 90,5% das prisões realizadas com a tecnologia foram de pessoas negras.

3) Tecnologias digitais vistas como “neutras” ou “objetivas” favorecem ainda mais excessos de policiais
Alguns estudos emergentes descobriram que a percepção popular – e errônea – de que tecnologias digitais são neutras favorecem excessos de policiais, que agem impulsivamente aos primeiros sinais ou indícios oferecidos pelas tecnologias. A mediação tecnológica também cria mais barreiras entre suspeitos e policiais, promovendo ainda mais a desumanização ao tirar possibilidades de remediação face a face na relação social.

Dois casos sobre reconhecimento que exemplificam o problema: em prisão de homem em Michigan, o suspeito precisou mostrar repetidamente aos policiais o quanto a foto do homem nas imagens da câmera de segurança em nada se parecia nem com ele nem com a sua foto da base de dados. Apesar disso, os policiais custaram a questionar a autoridade do sistema computacional .

Em etnografia realizada na implementação do sistema de reconhecimento em Londres, pesquisadores observaram que policiais desrespeitavam os protocolos construídos para decidir se a abordagem seria realizada ou não. Segundo o estudo, era comum “oficiais de rua não esperarem pelo processo de decisão na sala de controle – um claro exemplo de presunção em favor da intervenção” , reforçando o perigo da relação violenta de tais tecnologias com a cultura policial, independente da precisão ou imprecisão da análise de reconhecimento.

4) O mercado de inteligência artificial esconde o funcionamento de seus sistemas usando a defesa por “segredo de negócio” ou “inexplicabilidade algorítmica”
Técnicas de inteligência artificial cresceram em complexidade a partir de lógicas conexionistas de aprendizado profundo em aprendizado de máquina. Uma das características deste avanço é a escala de cálculo de correlações entre dados e resultados desejados no sistema que não permite auditoria humana detalhada. Apesar de não permitir a plena compreensão humana das “decisões” do sistema , são usadas assim que cumprem objetivos de negócio. Os impactos comumente são percebidos apenas muito depois da implementação, por jornalistas ou grupos de defesa de direitos humanos.

Vinculado a esta lógica, as grandes corporações de tecnologia rechaçam auditorias algorítmicas ao alegarem “segredo de negócio”. Poucas decisões judiciais buscando reparação de dados firmam a posição pela transparência.

5) Tecnologias do tipo no espaço público pressupõem e fortalecem sociedade vigilantista
Mesmo desconsiderando os fatores acima, a disseminação de tecnologias de vigilância ubíquas e pervasivas favorece uma compreensão da sociedade e espaço público como lugar de suspeição contínua e indiscriminada. O impacto da aceitação da vigilância pervasiva para a saúde do tecido social é um fator ainda desconhecido, que pode promover ainda mais a demonização do espaço público e da rua.

6) Não podemos pressupor boa-fé de corporações de tecnologia
A última década demonstrou inúmeros casos de vínculos problemáticos de corporações de tecnologia – responsáveis por sistemas de inteligência artificial, tecnologias biométricas, dispositivos digitais ou armazenamento de dados – a projetos autoritários e imperialistas. Da influência do Facebook no Brexit e eleições americanas, extremismo digital no YouTube e lobby da Google no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, a relação de corporações big tech ou startups de tecnologia com projetos autoritários e eugenistas é comum.

Devido à incompreensão do valor dos dados e colonialismo digital, instituições públicas brasileiras recorrem a usar serviços de tais organizações, pondo não só cidadãos como a própria soberania nacional em risco. Entre exemplos recentes, estão: o relatado pela pesquisa Educação Vigiada, sobre a exportação os dados de universidades e secretarias de educação brasileiras; o uso de servidor Oracle pelo TSE nas eleições 2020; e vazamento de dados de 533 milhões de usuários de Facebook em todo o mundo .

7) Vazamentos de dados vitimam empresas de tecnologias de todos os portes
Mesmo se os argumentos anteriores não estivessem presentes, o vazamento de dados por invasão criminosa de servidores ou problemas técnicos é um risco que desencoraja a permissão do acúmulo de dados massivos, em especial se biométricos. Casos cada vez mais frequentes de vazamento de dados são descobertos e instituições brasileiras que devem abordá-los ou puni-los são coniventes com projetos de privatização do estado. Em eventuais e prováveis vazamento de dados sensíveis como biometria e informações genéticas, o dano à sociedade é irreversível e imprevisível.

8) A infraestrutura de vigilância aumenta potencial violento de projetos autoritários
A disseminação de tecnologias de vigilância estabelecida no espaço público mesmo que seja aplicada apenas para fins do que é considerado hoje socialmente adequado em termos de segurança pública e persecução penal, cria potenciais violentos em governos antidemocráticos. A infraestrutura estabelecida em contextos com alguma garantia institucional pode ser facilmente arma de potencial inédito de dano em ditaduras ou guerras civis.

9) A imprecisão da tecnologia e infrações de direitos humanos são mais intensas para pessoas trans
A ideologia de produção de sistemas de inteligência artificial, em especial o reconhecimento facial, se calca em ideologias patriarcais, eurocêntricas e normativas sobre corpo, sexualidades e gênero. Pesquisadoras da Coding Rights apontam que tecnologias do tipo “reiteram e reforçam estereótipos de gênero ao classificar os rostos a partir de critérios definidos na própria criação das bases de dados que, em geral, são enviesadas tanto nas políticas de gênero, quanto nas políticas raciais” .

10) O custo-benefício para captura de condenados não justifica a coleta massiva
Na milionária implementação de reconhecimento facial em Londres, as bases reuniam fotos de mais de 2.400 suspeitos que geraram apenas 8 prisões. Dados proporcionais ainda piores são reportados no Brasil, onde gigantesca infraestrutura de reconhecimento facial foi implementada na Micareta de Feira de Santana, Bahia, coletando e vulnerabilizando 1,3 milhões de rostos para o cumprimento de apenas 18 mandados.

Imagem do card: https://www.flickr.com/photos/electronicfrontierfoundation/39225139155