Algoritmos de Opressão: como mecanismos de busca reforçam o racismo

Algoritmos e plataformas não são neutros. São construídos de modo que algumas visões de mundo, ideologias e pontos de vista se destacam e impõem-se, seja de forma intencional ou não. Apesar de estarmos em 2018 e centenas de pesquisadores, desenvolvedores e profissionais destacarem isto, a plataformização da mídia e do capitalismo através de empresas como Google, Facebook, Uber, AirBnB e similares surfa (e alimenta) a onda do individualismo, livre mercado e endeusamento estúpido da “tecnologia” para argumentar justamente o contrário: que seriam ambientes neutros por serem, justamente, criados com mecanismos de automatização de decisões livres da interferência humana.

Pesquisadores sérios e alguns segmentos da população como, por exemplo, mulheres negras, não podem se dar ao luxo de ignorar impacto e vieses dos algoritmos. Nesta interseção, a pesquisadora e professora Safiya U. Noble nos presenteou com a indispensável publicação de Algorithms of Oppression: how search engines reinforces racism lançado oficialmente neste mês de fevereiro de 2018. é Ph.D. pela University of Illinois, professora na University of Southern California (USC), previamente tendo ensinado também na UCLA, além de ser co-fundadora do Information Ethics & Equity Institute. Também é sócia de empresa focada em ciência de dados e pesquisa, a Stratteligence. Antes desse livro, co-editou “The Interesectional Internet: Race, Sex, Culture and Class Online” e “Emotions, Technology & Design”.

Em Algorithms of Oppression: how search engines reinforces racisma autora apresenta os resultados de ampla pesquisa sobre algoritmos e representação de determinados grupos, sobretudo mulheres e garotas negras no Google. A autora abre o primeiro capítulo, “A Society, Searching”, relembrando a campanha circulada pela UN Women que usou telas reais do recurso “Autocompletar” do buscador Google para mostrar como o sexismo e misoginia são representados pelas sugestões reais.

A campanha é o gancho para começar a discussão sobre a relevância e utilidade destes recursos como fortalecedores dos comportamentos que representam. Em seguida, a autora traz mais exemplos sobre representações de mulheres a partir de buscas tão simples quanto “black girls”, “why are women so” ou “why are Black people so” para mostrar como mecanismos de acesso a informação privilegiam pontos de vista de posições de poder – por exemplo, a hiperssexualização das garotas negras nos resultados é fruto de padrões de busca por conteúdo sexual e pornográfico, desrespeitando as mulheres negras como construtoras de narrativas e conteúdos próprios. Para tratar deste problema de pesquisa, Noble propõe a aplicação de uma abordagem com método e epistemologia feminista ao citar Sandra Harding, que diz que “Definir o que é necessário em termos de explicação científica apenas da perspectiva da experiência de homens brancos burgueses leva a compreensão parcial e até perversa da vida social”.

O segundo capítulo “Searching for Black Girls” traz diversos estudos de caso sobre representação de minorias políticas nos resultados da Google, para buscas como “black girls”, “latina girls”, “asian girls” etc.  A tela abaixo é inclusa no livro e mostra como os resultados para “black girls” oferecem uma representação pornográfica de meninas negras nos resultados.

Noble critica o uso puramente comercial, pela Google, de iniciativas como Black Girls Code, que não se reflete na melhoria de práticas na empresa de tecnologia ou na contratação minimamente representativa de profissionais negros. A distribuição de profissionais em empresas como a Google, Facebook e outras gigantes da tecnologia não representam nem de longe a distribuição de gênero e raça no país.

É especialmente relevante o fato de que a Google não só contrata engenheiros e cientistas da computação de forma enviesada, como também não constrói cargos e departamentos direcionados a tarefas de otimização da oferta de mídia quanto a diversidade cultural e respeito à humanidade dos seus clientes. Não são práticas novas, apesar das embalagens do Vale do Silício, como Noble demonstra ao fazer ligações destas representações ao histórico de construção de categorias raciais discriminatórias com fins de dominação. É imprescindível, então, adereçar a opacidades das tecnologias que regem as trocas comunicacionais:

“The more we can make transparent the political dimensions of technology, the more we might be able to intervene in the spaces where algorithms are becoming a substitute for public policy debates over resource distribution – from mortgages to insurance to educational opportunities”

O terceiro capítulo trata da representação de pessoas e comunidades na web em resultados de busca, especialmente o caso de sites de notícias falsas criadas por racistas supremacistas brancos nos EUA. Usando o exemplo de termos como “black on white crime”, a autora mostra como os resultados melhor rankeados levam a sites com dados falsos e cheios de discurso de ódio, com SERPs (“search engine results page”, termo usado geralmente para se referenciar à primeira página) que geram receita para a organização.

O quarto capítulo se debruça sobre ações realizadas por grupos e indivíduos para se proteger dos malefícios dos vieses dos mecanismos de busca e do registro ilegal ou antiético de dados. A partir de casos famosos como o IsAnyoneUp (site que hospedava ilegalmente “pornô de vingança”), a autora mostra correlatos relacionados à perfilização de indivíduos em categorias criminosas. Sites como UnpublishArrest e Mugshots cobram para retirar fotos de fichamento (“mugshots”) divulgadas amplamente na internet, que prejudicam indivíduos tanto culpados quanto inocentes. Como dados mostram, minorias étnicas são presas e fichadas de forma errônea e/ou abusiva com muito mais frequência nos EUA, o que leva a morosidade (4 a 6 semanas, quando acontece) de tentativas de “limpar” resultados de busca um mecanismo de intensificação da violência contra as minorias. O “direito ao esquecimento”, tema que já tratamos aqui no blog a partir de Mayer-Schonberger, é explorado a partir do pensamento de autores como Oscar Gandy Jr., mostrando alternativas para a materialização de aspectos negativos da ultra-racionalização enviesada da sociedade.

O fechamento deste capítulo tenta enfatizar a importância da retomada da transparência sobre decisões quanto a construção de índices e sistemas de informação:

In addition to public policy, we can reconceptualize the design of indexes of the web that might be managed by librarians and info rmation institutions and workers to radically shift our ability to contextualize information. This could lead to significantly greater transparency, rather than continuing to make the neoliberal capitalist project of commercial search opaque.

O quinto capítulo, então, parte para imaginar o “Future of Knowledge in the Public” a partir de uma revisão crítica sobre o histórico de problemas de classificação de temas, pessoas e grupos em repositórios de informação. Até muito recentemente categorias como “Jewish Question”, “Yellow Peril” eram usadas no sistema de classificação da Biblioteca do Congresso nos EUA, que estabelece os padrões seguidos no país. A dominação cultural sobre minorias é estruturada e materializada em códigos de enquadramento de estudos, literatura e pensamento sobre a sociedade de um modo que direciona as interpretações e desdobramentos possíveis. Sistemas de informação não são objetivos e não podem ser vistos dessa forma. Noble propõe seguir as recomendações do prof. Jonathan Furner para se aplicar Teoria Racial Crítica a estudos de informação, através de procedimentos como:

  •  Aceitação, pelos criadores dos sistemas, que os vieses existem e são resultados inevitáveis dos modos pelos quais são estruturados;
  • Reconhecimento que a aderência a uma política de neutralidade contribuir pouco para a erradicação dos vieses e pode, na verdade, estender suas existências;
  • Construção, coleta e análise de expressões narrativas de sentimentos, pensamentos e crenças de usuários de populações racialmente diversas dos esquema de classificação.

Buscando discutir como encontrar informação “culturalmente situada” na web, a autora explica o valor e potencial de alteridade de sites e buscadores focados em minorias como Blackbird (www.blackbirdhome.com),as BlackWebPortal (www.blackwebportal.com), BlackFind.com (www.blackfind.com), Jewogle (www.jewogle.com), Jewish.net (http://jewish.net/), JewGotIt (www.jewgotit.com) e  Maven Search (www.maven.co.il).

No sexto e último capítulo, “The Future of Information Culture”, Noble critica o monopólio da informação e o papel de organismos regulatórios como a FCC (Federal Communications Commission) nos EUA. Discutir o papel de organizações de mídia cada vez mais concentradas é uma questão de políticas públicas. A autora mostra, através da revisão de várias decisões judiciais, como os possíveis malefícios desta concentração tem impactos que são materializados em casos “extremos” ao mesmo tempo que influenciam a sociedade como um todo. A insistência de enquadrar ecossistemas da Google, Facebook e afins como “neutros”, como se não tivessem responsabilidade tais como organizações de mídia e imprensa também é endereçada pela autora. Para que a internet seja de fato uma fonte de oportunidades para as pessoas de forma democrática, os modos pelos quais suas principais propriedades são construídas deve estar sob princípios de transparência e acontabilidade.

Assim como a diversidade no Vale do Silício ter diminuído ao invés de aumentado nos últimos anos, a desigualdade econômica entre famílias brancas, negras e hispânicas cresceu. Segundo dados da Federal Reserve, o patrimônio líquido de famílias brancas era cerca de 10x o de famílias negras.

A autora traz as colaborações da pesquisa sobre exclusão digital para detalhar como aspectos econômicos, educacionais, culturais são materializados em três pontos principais de desigualdade quanto a tecnologia: acesso a computadores e softwares; desenvolvimento de habilidades e treinamento; e conectividade à Internet, como banda larga.

Por fim, como diz de forma “a desigualdade social não será resolvida por um app”. A nossa atual confiança excessiva nas tecnologias e auto-regulação de mercados esconde os impactos e decisões feitas dia a dia por profissionais, designers, engenheiros, cientistas e executivos de negócio que pecam por intenção ou omissão quanto à efetiva liberdade de expressão e uso da web. Somente a associação intencional, inteligente e diversa de pessoas de diferentes backgrounds profissionais e culturais engajadas em tornar o mundo um lugar melhor pode salvar a internet. As concepções neoliberais sobre mercado, comunicação e democracia vão contra este objetivo, como aponta em:

New, neoliberal conceptions of individual freedoms (especially in the realm of technology use) are oversupported in direct opposition to protections realized through large-scale organizing to ensure collective rights. This is evident in the past thirty years of active antilabor policies put forward by several administrations47 and in increasing hostility toward unions and twenty-first-century civil rights organizations such as Black Lives Matter. These proindividual, anticommunity ideologies have been central to the antidemocratic, anti-affirmative-action, antiwelfare, antichoice, and antirace discourses that place culpability for individual failure on moral failings of the individual, not policy decisions and social systems.

É possível ver uma palestra de Safiya U. Noble realizada no Personal Democracy Forum 2016 que cobre as ideias principais da publicação:

Saiba mais sobre o livro e o trabalho da autora em seu site: https://safiyaunoble.com/research-writing/

A pesquisa de campo experimental Perecquiana

Em Georges Perec’s experimental fieldwork; Perecquian fieldwork, publicado em dezembro de 2016 na revista Social & Cultural Geography, o pesquisador Richard Phillips da University of Sheffield aborda a pesquisa de campo experimental a partir das propostas do escritor Georges Perec. Para Phillips, “Perec antecipa e informa temas chave em pesquisa de campo contemporânea – uso do lúdico, atenção ao ordinário e escrita como prática de pesquisa – e a abordagem ensaística que apoia cada uma destas”.

O autor cita diversos modos experimentais de pesquisa nos quais se propõem aos leitores realizar trabalhos de campo, como How to be an Explorer of the world e The lonely planet guide to experimental travel; e trabalhos relacionados a geografia com proposições de observação urbana relacionados a modos de selecionar e agrupar atividades, objetos e lugares.

Propõe que as abordagens mais sistemáticas são fruto das perspectivas que se baseiam no Situacionismo e, portanto, vai comparar a perspectiva situacionista com a abordagem de Perec, defendendo que a aplicação mais estruturada de leituras do autor pode ser ainda mais útil. Phillips defende no artigo que o trabalho de Perec, apesar do próprio tratar de alguns de seus livros como “sociológicos” seria eminentemente geográficos. Na França dos anos 60 e 70, evidentemente, a sociologia estava mais em voga, daí a aproximação mais clara. Porém, tanto o Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense como o próprio Species of Spaces além de conceitualmente estar mais próximos da geografia, também trazem a questão do espaço no título.

Phillips sugere que Perec antecipou três tendências no trabalho de campo experimental: o lúdico; a exploração de locais ordinários; e a escrita como prática de campo.

Quanto ao trabalho de campo lúdico, em contraposição ao trabalho de campo ortodoxo e mecanicista, a aproximação ao lúdico e ao jogo trouxeram frescor à exploração urbana. Apesar das regras e restrições impostas pela literatura experimental de Perec, sobretudo relacionadas aos projetos como OuLiPo, eram regras e restrições fluídas. Estão presentes o uso criativo de listas, índices, referências acadêmicas fictícias e propostas implícitas de replicação de experimentos.

Sobre a exploração de locais ordinários, livros como o Tentativa se destacam do ponto de vista da observação e descrição de um cotidiano ordinário, mas o próprio livro Vida: Modo de Usar também aplica, para produzir ficção, recursos similares. Ao descrever cada ambiente de um prédio, assim como suas histórias, em um quebra-cabeça narrativo, Perec aproxima o projeto do narrador a ideia de levantamento ou censo, incluindo desta vez as relações entre as unidades habitacionais. Os exercícios de descrição do ordinário pro’curam gerar reencantamento do já conhecido, de modo similar à proposta de Merleau-Ponty citada pelo autor ‘the act of describing the world undoes its familiarity to produce wonderment”

E ver a escrita como prática de pesquisa de campo, para Perec, passa por pensar minuciosamente e criativamente como a própria documentação e escrita será realizada. As notas de pesquisa e descrições – sejam narrativas, ensaísticas ou ‘densas – podem ser pensadas como “flat” (em “writing flatly”), que seria descrever o observado sem adicionar julgamento, camadas simbólicas ou evocações sociais, teóricas ou históricas. Entretanto, esta tentativa é aprioristicamente fadada ao fracasso parcial, pois uma escrita totalmente “factual, simple, descritive, unvarnished, empirical” é impossível de ser alcançada. A tentativa, porém, é um exercício de exploração da pesquisa. O autor propõe que

writing is fundamental to another feldwork practice: the identifcation of individual observations with classes of things and actions through categories and classes, categorisation and classifcation. Perec used lists and inventories to explore the taxonomies that are commonly deployed in the experience and interpretation of the everyday

Na conclusão o autor revisita o impacto de Georges Perec em métodos etnográficos, observação de massa e técnicas de pesquisa de mercado. A tradição “perecquiana” de pesquisa, impulsionada pelo resgate e reapropriação de suas obras, poderá nos levar para prosseguirmos experimentalmente, tentativamente, ensaisticamente.

 

Referências

PHILLIPS, Richard. Georges Perec’s experimental fieldwork; Perecquian fieldwork. Social & Cultural Geography, p. 1-21, 2016.

PEREC, Georges. A vida modo de usar. Editora Companhia das Letras, 1989.

PEREC, Georges. Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense. São Paulo: Editorial Gustavo Gili, 2016.

SMITH, Keri. How to be an explorer of the world: portable life museum. Penguin, 2008.

Post, Mine, Repeat: livro de Helen Kennedy (@hmtk) estuda o uso cotidiano dos dados sociais digitais

post-mine-repeat-helen-kennedyAlgumas ferramentas de monitoramento de mídias sociais líderes mundialmente, como Sysomos e Brandwatch, nasceram em 2006, 2007. Ou seja, sem sequer contar práticas anteriores de estudo mercadológico das conversas nas mídias sociais, temos ao menos 10 anos deste mercado. Tornou-se cotidiano, ordinário. Mesmo grandes agências de publicidade, tipicamente retardatárias em inovação, criaram setores internos de monitoramento de mídias sociais, social listeningsocial business intelligencesocial big data ou qualquer reinvenção de anglicismo em moda.

Além de se estudar limites e possibilidades tecnológicas e metodológicas do campo, urge estudar como a prática de mineração e análise de dados sociais digitais se configurou como um mercado próprio que engendra atividades e gera impacto sobre as pessoas.  Helen Kennedy, professora da Universidade de Sheffield, publicou em 2016 o livro Post, Mine, Repeat: Social Media Data Mining Becomes Ordinary com este objetivo.

Os três primeiros capítulos da publicação buscam explicar como a mineração de dados em mídias sociais se tornou cotidiana, ordinária; a importância de estudar como estes dados são construídos e impactam a sociedade; e o que deve nos preocupar sobre a mineração de dados em mídias sociais.

A primeira preocupação é frequentemente mencionada no discurso popular: privacidade. É comum, em alguns meios, a crítica a usuários de plataformas de mídias sociais por não lerem os Termos de Uso ou ainda, ignorarem a possível coleta de dados. A partir de referências bibliográfica e entrevistas com usuários comuns de mídias sociais, Helen Kennedy explica no livro que há diferentes noções do que constitui privacidade:

there is a distinction between social privacy (controlling which people within their networks get access to their information) and institutional privacy (the mining of personal information by social media platforms and other commercial companies) and that social media users’ concerns about controlling their personal information relate to the former, not the latter (KENNEDY, 2016, p.17)

A segunda grande questão é o potencial de se criar mais e mais discriminação e controle social através dos dados nas mídias sociais. Como já escrevi ao falar do direito ao esquecimento e de escores como o Klout, as informações pervasivas sobre as pessoas são usadas por empresas e governos ao tomar decisões que podem impactar profundamente os indivíduos. De empregos a migração, até perfilização de consumo, a

Social media data mining raises serious questions in relation to rights, liberties and social justice, and the fact that the ‘data delirium’ (van Zoonen 2014) is driven by the agendas of big business and big government should trouble those of us who doubt whether these agendas serve the public interest. (KENNEDY, 2016, p.22)

Persiste em alguns meios a ideia de que dados são objetivos. No atual panorama internacional, no qual startups cospem novos produtos diariamente baseados em “inteligência” artificial com pouca ou nenhuma responsabilidade sobre seus impactos sociais, a ideia de “quantificação de tudo” se torna uma meta. Mas quantificação não é um processo de medir o mundo, mas sim de ordená-lo e gerenciá-lo:

Quantification is a process of managing the world, ordering it, not understanding it: what is lost when numbers dominate are the understandings that qualitative sensibilities help us to generate, (KENNEDY, 2016, p.136)

As preocupações metodológicas compõem a terceira preocupação central do livro e estão diretamente relacionadas à quarta, que trata das novas desigualdades de acesso a estes dados. Plataformas como Facebook reúnem trilhões de pontos de dados diários criados pelos usuários no seu uso cotidiano, mas que só a própria empresa tem acesso. Como alertam diversos pesquisadores nos últimos anos (SAVAGE & BURROWS, 2009; MARRES, 2012) testemunhamos uma redistribuição e realocação dos métodos: novos atores tem acesso exclusivo de uma quantidade nunca antes imaginada de dados – para fins também particulares.

Mas onde está a agência dos atores envolvidos? Quem toma as decisões que moldam as práticas? Kennedy vai observar sobretudo a ação dos trabalhadores deste mercado, dos usuários e o conceito de tecno-agência. A partir desta ideia, discorre sobre como as relações de poder se corporificam nas tecnologias que reproduzem e retroalimentam suas próprias razões de existirem.

Como pesquisa primária para o livro, Kennedy realizou entrevistas, acompanhamento, workshops e produção de relatórios junto a oganizações do setor público e do ramo comercial. O quarto e quinto capítulos, respectivamente, se dedicam a descrever as percepções dos profissionais envolvidos com o monitoramento de mídias sociais. Para estudar as organizações do setor público, Kennedy realizou pesquisa-ação durante 6 meses em duas câmaras municipais e um grupo de museus da Inglaterra. Junto a consultores, explorou junto às equipes destas instituições as possibilidades da mineração de dados em mídias sociais e descreveu as questões, problemas e potencialidades vistas pelas organizações.

No capítulo seguinte, focado no ramo comercial, entrevistou em profundidade 14 profissionais de agências e consultorias especializadas em monitoramento e pesquisa em mídias sociais. A pesquisadora explorou as percepções destes profissionais quanto a suas práticas, limites éticos, noções de privacidade e a dualidade entre benefícios/malefícios para as populações monitoradas. Além de diagnosticar as tentativas de justificação das práticas através de noções limitadas – e não baseadas em fatos – do que os usuários finais acham, percebeu também pouco conhecimento sobre o que efetivamente é feito com os dados, informações e insights depois que os entregam em relatórios.

Esta lacuna de informação fornece o gancho para o sexto capítulo, com o título literal What Happens to Mined Social Media Data? (O que acontece com os dados minerados de mídias sociais?). Também através de entrevistas, a pesquisadora falou com universidades, organizações de mídia, câmaras municipais, museus e ONGs. Entre os conceitos derivados das entrevistas, merece particular destaque a ideia de “Evangelismo de Dados” e o “Fetichismo dos Milhares“, através do qual Kennedy explica como parte dos profissionais entrevistados buscam determinados indicadores não para realizar ações concretas, mas para legitimar suas decisões – independente dos insights possivelmente (e frequentemente ausentes) gerados.

No capítulo seguinte, sobre preocupações dos usuários quanto a estas práticas, a autora oferece uma percepção que tenho observado nos últimos anos sobre o léxico envolvido na área. Segundo Kennedy:

By the time of writing this chapter in 2015, the term ‘social media monitoring’ is much less widely used, perhaps because of the surveillant connotations of the word ‘monitoring’. I use these and other terms (‘insights’, ‘intelligence’, ‘monitoring’, ‘analytics’, ‘data mining’) interchangeably here to reflect company language, conscious that new terms may come into usage in the time between writing and publishing the book. (KENNEDY, 2016, p. 160)

Essa mudança semântica tenta deixar de lado o aspecto vigilantista que está no cerne do mercado de monitoramento de mídias sociais. Kennedy faz uma revisão dos relativamente raros estudos sobre percepção dos usuários quanto a práticas de monitoramento de seus dados e descobre, a partir de grupos focais realizados por sua equipe, que usuários da Inglaterra, Espanha e Noruega possuem ideias bem diversas do que significa “ser monitorado”. De modo geral, a maior parte dos grupos estudados (com exceção dos profissionais de marketing): não sabem das possibilidades concretas de monitoramento de mídias sociais; não conhece os termos de uso das plataformas; e bom número tem uma visão dos limites do monitoramento baseado na ideia de “uso justo” (fairness) dos dados que pode variar muito e, definitivamente, não corresponde ao que plataformas ou analistas fazem.

Nessa relação entre usuários e profissionais, Kennedy fala de uma “flexibilidade interpretativa“:

We might characterise the ethics of commercial social media data mining as being in a state of interpretative flexibility, a term used within Science and Technology Studies (STS) to characterise socio-technical assemblages for which a range of meanings exist, whose definition and use are still under negotiation (KENNEDY, 2016, p. 192)

O oitavo capítulo busca revisar e entender potenciais de se “fazer o bem com os dados”. Inicia com uma excelente revisão do que está sendo feito mundialmente (no mundo anglófilo, na verdade) sobre uso de dados em mídias sociais para pesquisa científica. Em seguida, explora o ativismo de dados e seu estado da arte em projetos proativos e reativos.

Como conclusão, o nono capítulo revisa as novas “relações de dados” na contemporaneidade, onde o desejo pelos números e a dataficação são pervasivas. A quantificação do qualitativo traz em si o risco de transformar relações sociais e de poder em “caixas pretas”:

In datafied times, what was once qualitative is now measured quantitatively, so numbers are desired in relation to aspects of life previously the domain of the qualitative. This quantification of the qualitative should concern us because of what is lost when numbers are assigned such power, when numbers become cultural objects, and take on a new force.  (KENNEDY, 2016, p. 227)

Assim, é preciso seguir os métodos através dos meios na medida em que evoluem e se transformam, como a autora propõe a partir das reflexões do Richard Rogers:

Follow the methods of the medium as they evolve, learn from how the dominant devices treat natively digital objects, and think along with those object treatments and devices so as to recombine or build on top of them. (Rogers 2013, p. 5) (KENNEDY, 2016, p. 289)

Antes de procurar resultados e conclusões definitivas – que nunca as foram -, devemos usar o pensamento sobre métodos para entender a própria indeterminância das plataformas em seu âmago.

social researchers should embrace their under-determinacy.  (KENNEDY, 2016, p. 299)

Referências

KENNEDY, Helen. Post, Mine, Repeat. Ebook: Palgrave Macmillan, 2016.

MARRES, Noortje. The redistribution of methods: on intervention in digital social research, broadly conceived. In: Sociological Review, vol. 60, s. 1, 2012. pp. 139-165.

SAVAGE, Mike; BURROWS, Mike. Some Further Reflections on the Coming Crisis of Empirical Sociology. Sociology, vol. 43, n. 4, 2009. pp. 765–775

ROGERS, Richard. Digital Methods. Londres: The MIT Press, 2013.

Livro “Monitoramento e Pesquisa em Mídias Sociais” já está disponível!

livro-monitoramento-e-pesquisa-em-midias-sociaisÉ com muito prazer que anuncio a publicação do quinto livro co-organizado por mim! Eu e Max Stabile, meu sócio e idealizador do IBPAD, organizamos o livro Monitoramento e Pesquisa em Mídias Sociais: metodologias, aplicações e inovações e acabamos de disponibilizá-lo online.

O livro reúne colaborações de uma rede de profissionais e pesquisadores que atuam em universidades, empresas e agências.  Temas basilares, mas ainda controvertidos, como análise de sentimento, atendimento ao consumidor ou etnografia somam-se a aplicações e inovações que vão de reconhecimento de imagem a estudos sobre memes, compondo contribuição sólida ao campo.

Para todos aqueles que querem iniciar suas pesquisas utilizando dados de mídias sociais, este livro será um excelente guia no desenvolvimento de seus trabalhos. Para aqueles que já atuam ou querem atuar no mercado de mídias sociais, o livro traz referências a métodos e inovações que podem ser uma ampla fonte de novos produtos e pesquisas. 

Sumário:

  • Prefácio – Fábio Malini
  • Inteligência de Mídias Sociais no Brasil – Ana Claudia Zandavalle
  • Análise de Sentimento – Skrol Salustiano
  • Informação e Tagging – Ronaldo Araújo e Dora Steimer
  • Abordagens da coleta de dados nas mídias sociais – Marcelo Alves
  • SAC e Social CRM – Marcelo Salgado
  • Relacionamento – Clarissa Motta
  • Gestão de Crises – Mariana Oliveira
  • Brand Awareness –  Juliana Dias
  • Comunidades de Marca – Andrea Hiranaka
  • Etnografia para Mídias Sociais – Débora Zanini
  • Criação de Personas e Ilustrações – Tarcízio Silva e Yuri Amaral
  • Pesquisando Memes – Viktor Chagas e Janderson Pereira Toth
  • Análise de Redes – Max Stabile e Tarcízio Silva
  • Influenciadores – Gabriel Ishida
  • Jornalismo de Dados – Soraia Lima
  • Campanhas Eleitorais – Max Stabile e Jaqueline Buckstegge
  • Gestão do Conhecimento – Cinara Moura
  • Posfácio – Rodrigo Helcer e Milton Stiilpen

Faça o download do livro no site do IBPAD.