Slideshow apresentado no Congresso da Intercom em setembro de 2017. Acesse o artigo completo em “Georges Perec e o Monitoramento de Mídias Sociais: algumas aproximações e possibilidades”:
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Novo artigo: “Georges Perec e Monitoramento de Mídias Sociais”
A obra de Georges Perec tem sido reapropriada para diversos outros fins em disciplinas como sociologia, psicologia e geografia. O presente artigo, “Georges Perec e o Monitoramento de Mídias Sociais: algumas aproximações e possibilidades” oferece uma revisão de algumas dessas reapropriações, com ênfase na pesquisa de viés sociológico e comunicacional ressignificada com potencialidades e restrições próprias do registro e resgate do cotidiano nas mídias sociais, incluindo leitura crítica de um estudo de caso. Está disponível nos anais do 40º Congresso da Intercom, que acontecerá em setembro:
A pesquisa de campo experimental Perecquiana
Em Georges Perec’s experimental fieldwork; Perecquian fieldwork, publicado em dezembro de 2016 na revista Social & Cultural Geography, o pesquisador Richard Phillips da University of Sheffield aborda a pesquisa de campo experimental a partir das propostas do escritor Georges Perec. Para Phillips, “Perec antecipa e informa temas chave em pesquisa de campo contemporânea – uso do lúdico, atenção ao ordinário e escrita como prática de pesquisa – e a abordagem ensaística que apoia cada uma destas”.
O autor cita diversos modos experimentais de pesquisa nos quais se propõem aos leitores realizar trabalhos de campo, como How to be an Explorer of the world e The lonely planet guide to experimental travel; e trabalhos relacionados a geografia com proposições de observação urbana relacionados a modos de selecionar e agrupar atividades, objetos e lugares.
Propõe que as abordagens mais sistemáticas são fruto das perspectivas que se baseiam no Situacionismo e, portanto, vai comparar a perspectiva situacionista com a abordagem de Perec, defendendo que a aplicação mais estruturada de leituras do autor pode ser ainda mais útil. Phillips defende no artigo que o trabalho de Perec, apesar do próprio tratar de alguns de seus livros como “sociológicos” seria eminentemente geográficos. Na França dos anos 60 e 70, evidentemente, a sociologia estava mais em voga, daí a aproximação mais clara. Porém, tanto o Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense como o próprio Species of Spaces além de conceitualmente estar mais próximos da geografia, também trazem a questão do espaço no título.
Phillips sugere que Perec antecipou três tendências no trabalho de campo experimental: o lúdico; a exploração de locais ordinários; e a escrita como prática de campo.
Quanto ao trabalho de campo lúdico, em contraposição ao trabalho de campo ortodoxo e mecanicista, a aproximação ao lúdico e ao jogo trouxeram frescor à exploração urbana. Apesar das regras e restrições impostas pela literatura experimental de Perec, sobretudo relacionadas aos projetos como OuLiPo, eram regras e restrições fluídas. Estão presentes o uso criativo de listas, índices, referências acadêmicas fictícias e propostas implícitas de replicação de experimentos.
Sobre a exploração de locais ordinários, livros como o Tentativa… se destacam do ponto de vista da observação e descrição de um cotidiano ordinário, mas o próprio livro Vida: Modo de Usar também aplica, para produzir ficção, recursos similares. Ao descrever cada ambiente de um prédio, assim como suas histórias, em um quebra-cabeça narrativo, Perec aproxima o projeto do narrador a ideia de levantamento ou censo, incluindo desta vez as relações entre as unidades habitacionais. Os exercícios de descrição do ordinário pro’curam gerar reencantamento do já conhecido, de modo similar à proposta de Merleau-Ponty citada pelo autor ‘the act of describing the world undoes its familiarity to produce wonderment”
E ver a escrita como prática de pesquisa de campo, para Perec, passa por pensar minuciosamente e criativamente como a própria documentação e escrita será realizada. As notas de pesquisa e descrições – sejam narrativas, ensaísticas ou ‘densas – podem ser pensadas como “flat” (em “writing flatly”), que seria descrever o observado sem adicionar julgamento, camadas simbólicas ou evocações sociais, teóricas ou históricas. Entretanto, esta tentativa é aprioristicamente fadada ao fracasso parcial, pois uma escrita totalmente “factual, simple, descritive, unvarnished, empirical” é impossível de ser alcançada. A tentativa, porém, é um exercício de exploração da pesquisa. O autor propõe que
writing is fundamental to another feldwork practice: the identifcation of individual observations with classes of things and actions through categories and classes, categorisation and classifcation. Perec used lists and inventories to explore the taxonomies that are commonly deployed in the experience and interpretation of the everyday
Na conclusão o autor revisita o impacto de Georges Perec em métodos etnográficos, observação de massa e técnicas de pesquisa de mercado. A tradição “perecquiana” de pesquisa, impulsionada pelo resgate e reapropriação de suas obras, poderá nos levar para prosseguirmos experimentalmente, tentativamente, ensaisticamente.
Referências
PHILLIPS, Richard. Georges Perec’s experimental fieldwork; Perecquian fieldwork. Social & Cultural Geography, p. 1-21, 2016.
PEREC, Georges. A vida modo de usar. Editora Companhia das Letras, 1989.
PEREC, Georges. Tentativa de Esgotamento de um Local Parisiense. São Paulo: Editorial Gustavo Gili, 2016.
SMITH, Keri. How to be an explorer of the world: portable life museum. Penguin, 2008.
Tendências, coisas e descrição social em Erner, Perec, Becker e Manovich
O que compõe uma tendência? O livro “Sociologia das Tendências“, de Guillaume Erner busca responder a esta importante questão com rigor científico, baseado em referencial sociológico e sua experiência de dezenas de anos como pesquisador.
Apesar de seu foco estar na moda, assim como a editora Gustavo Gili, o livro deveria ser lido por qualquer comunicador interessado em entender como preferências por estilos, produtos e comportamentos flutuam ao longo do tempo.
O primeiro capítulo, então, busca definir tendências e seus vários níveis de tipologia, como não comerciais x comerciais; tendências confidenciais x massivas; funcionais e não-funcionais; ideológicas e não ideológicas. Quanto a esta última, traz um insight que explica parte da dificuldade de transformar o estudo de tendências em aspectos objetivamente mensuráveis ou pesquisáveis:
“as tendências ideológicas, a exemplo das tendências funcionais, obedecem a ‘boas razões’ que o sujeito pode evocar espontaneamente. Um indivíduo interessado pelo budismo é, em geral, capaz de expor o que o atrai nesse dogma; do mesmo modo, o fato de querer um carro econômico não decorre de uma lógica difícil de entender. Já o entusiasmo das massas pelo macaron tem origem num processo muito mais misterioso”
A história da “tendência” e sua transformação em motriz da sociedade é o tema do segundo capítulo, que revisita pontos chave do desenvolvimento do capitalismo como a revolução industrial, a cultura do automóvel e as primeiras revistas de moda na Europa. O novo ethos da modernidade foi essencial para a viabilização de uma cultura da moda:
Essa “neomania” tem uma história, afirma Colin Campbell; ela surgiu após os séculos conservadores que desprezavam o novo. Somente com o desaparecimento da sociedade tradicional, a paixão pela moda se difundiu pela sociedade: o indivíduo passou a ter a possibilidade de molar tanto a sociedade quanto sua pessoa segundo suas vontades.
O terceiro capítulo busca discutir o essencialismo das tendências e seus limites. A partir semiologia de Roland Barthes, insere as ideias pertinentes aos símbolos incorporados em objetos e comportamentos, que seriam representativos de coisas e valores terceiros. Assim, as tendências seriam sempre calcadas no tempo e espaço. Entender o espírito do tempo permite compreender as tendências – as fichas culinárias da revista Elle, por exemplo, incorporariam a ideologia pequeno-burguesa da época.
Antes de chegar ao quarto capítulo, o conceito de Robert K. Merton de “profecia autorrealizável” esclarece que “as definições coletivas de uma situação (profecia e previsões) fazem parte da situação e, assim, afetam seus desenvolvimentos futuros”. É a ponte para se entender como a distinção e difusão vertical dos gostos. estudada a partir de Bourdieu. Relações de poder entram no jogo, pois definições do que é valorizado, novo ou cool são disseminadas pela rede de influências, olhar e metáfora tão frequentes e persuasivas nas mídias digitais. Para Erner,
“Segundo a sociologia das redes, nossas influências não vêm de uma categoria de indivíduos, dotados de uma competência no assunto, mas da rede de sociabilidade à qual cada um pertence”
Para tanto, discorre um pouco sobre teoria de redes a partir de Stanley Milgram, Mark Granovetter e Erdos.
Por fim, o quinto capítulo chega a um momento no qual o estudo, análise e criação de tendências já se tornou um mercado em si mesmo. Cita empresas como a WSGN que se dedicam a analisar profissionalmente tendências, com o apoio de colaboradores observando inovações, materiais, coleções e tecnologias em todo o mundo.
Ao final do livro, Erner destaca que “para uma boa compreensão das tendências, é indispensável a leitrua de As Coisas, de Georges Perec, livro escrito por um sociólogo que se tornou romancista”. Boa surpresa para minhas últimas leituras deste ano, que percorreram a obra de Perec antes de chegar ao Erner. Em As Coisas, lançado em 1965, o autor apresenta um romance sutilmente sociológico sobre um casal, Jérôme e Sylvie, que larga a faculdade para trabalhar no que ele chama de “psicossociólogos”. Os protagonistas são pesquisadores de mercado para agências de publicidade, sobretudo de entrevistas em profundidade, um segmento que despontava na França da década de 1960. Ao longo do livro sem diálogos, Perec descreve a busca do casal por sentido, sobretudo no consumo e a tentativa de refinamento ou busca por tendências – seja numa mesinha de canto, na manifestação política ou na moradia em outro país.
A escolha da profissão de ambos não é detalhe na obra. Buscando sentido através das coisas, também fazem dinheiro tentando entender como as coisas são vistas e criadas. Em um trecho particularmente inspirado, Perec lista as questões de pesquisa que enfrentam:
“E, durante quatro anos, talvez mais, exploraram, entrevistaram, analisaram. Por que os aspiradores tipo trenó se vendem tão mal? O que pensam, nos meios de extração mais modesta, da bebida preparada com chicória? Gosta do purê já preparado, e por quê?” Porque é leve? Porque é untuoso? Por que é fácil de fazer: um gesto e pronto? Acha que os carrinhos de bebê são realmente caros? Não está sempre disposto a fazer um sacrifício pelo conforto das crianças? Como votará a mulher francesa? Gosta de queijo em tubo? É a favor ou contra os transportes coletivos? Em que presta atenção primeiro quando come um iogurte: na cor? Na consistência? No gosto? No aroma natural? Lê muito, pouco, ou nada? Vai a restaurante? A senhora gostaria de alugar um quadro da sua casa a um negro? O que pensa a juventude? O que pensam os executivos? O que pensa a mulher de trinta anos? O que você pensa das férias? Onde passa suas férias? Gosta dos pratos congelados? Quanto imagina que custa um isqueiro como este? […]
E houve o sabão em pó, a roupa que seca, a roupa que é passada. O gás, a eletricidade, o telefone. As crianças. As roupas e as roupas de baixo. A mostarda. As sopas em pacote, as sopas em lata. Os cabelos: como lavá-los, como pintá-los, como mantê-los, como fazê-los brilhar. Os estudantes, as unhas, os xaropes para a tosse, as máquinas de escrever, os adubos, os tratores, as diversões, os presentes, a papelaria, a linha branca, a política, as autoestradas, as bebidas alcoólicas, as águas minerais, os queijos e as conservas, as lâmpadas e as cortinas, os seguros, a jardinagem.
Nada do que era humano lhe foi alheio” (PEREC ,2012, p.26-27).
Para os prováveis leitores deste blog – profissionais da “nova” área das mídias sociais, sobretudo das que envolvem monitoramento de mídias sociais -, as similaridades são gritantes. Além da profissão focada em suposta inovação e descoberta dos desejos dos consumidores, a relação com o mercado tradicional de agências publicitárias também está ali. Enquanto sentem-se livres e buscam a liberdade através de seu estilo de vida longe das “amarras” do emprego formal em um momento, noutro percebem que a transição generacional os levará a cargos burocráticos – ou a pobreza. Em um período no qual vemos os negócios que se vendiam como disruptivos sucumbirem a aquisições, fusões ou perda de mercado para players calcados em capital especulativo, difícil não traçar paralelos.
Howard Becker (autor do indispensável Outsiders) dedica um artigo aos experimentos de Perec em descrição social. Ao tratar de As Coisas, Becker interpreta “descrição da sociedade sendo dominada pelo consumo material, uma sociedade na qual, mais exatamente, coisas passaram a dar forma às vidas das pessoas de um modo e grau nunca visto antes” (2001, p.75). É uma narrativa que, ao focar no cotidiano e no ordinário, transcende o material. Em outro trecho, deixa mais explícita a interpretação do livro como dispositivo etnográfico:
“As Coisas faz uso de outro dispositivo literário/etnográfico: a lista detalhada de objetos e pessoas, especialmente objetos. Uma lista sem análise explícita ou formal de seus conteúdos é um potente recurso representacional, usado mais por artistas do que cientistas sociais”. (BECKER, 2001, p.66)
Em outro trabalho, “Tentativa de esgotamento de um local parisiense”, Perec anotou tudo o que viu durante três dias em uma praça parisiense chamada Saint-Sulpice. A vibração do fluxo de pessoas, carros, animais, objetos ou mesmo elementos atmosféricos é descrita ora de forma aparentemente desencontrada, ora de forma que dá luz a classes de coisas:
“várias dezenas, várias centenas de ações simultâneas, de microacontecimentos, cada um dos quais implicando posturas, atos motores, dispêndio de energia específicos:
discussões de dois, discussões de tres, discussões de vários: o movimento dos lábios, os gestos as mímicas expressivas
modos de locomoção: caminhando, em veículos de duas rodas (sem motor, a motor), automóveis (carros particulares, carros empresariais, carros de aluguel, autoescolas), veículos utilitários, do serviço público, transporte comunitário, ônibus de turismo
maneiras de carregar (na mão, embaixo do braço, às costas)
modos de traço (carrinho de compras)
graus de determinação ou de motivação: esperar, passear, arrastas, errar, ir, correr para, precipitar-se (em direção a um táxi livre, por exemplo), procurar, zanzar, hesitar, caminhas com passo decidido
posições do corpo: sentado (nos ônibus, nos carros, nos cafés, nos bancos)
de pé (nas paradas de ônibus, diante de uma vitrina (Laffont, casa funerária), ao lado de um táxi (pagando)
A enumeração não é apenas de coisas, mas de concentração de tipos e classes de objetos e comportamentos. Os itens são agrupados em modos, maneiras e graus que dão visibilidade a um aspecto (motor, cinético ou ‘energético’) que não prestamos atenção no dia a dia.
A relevância desta postura analítica para os adeptos dos métodos digitais e monitoramento de mídias sociais já deve ter ficado clara neste ponto. A convergência entre a descrição exaustiva e minuciosa de ambientes, fenômenos e acontecimentos sociais – e sua aplicação na percepção de tendências – se aproxima das possibilidades engendradas pela abundância de dados sociais digitais. No projeto The Exceptional and the Everyday: 144 Hours in Kiev, Manovich, Alise Tifentale, Mehrdad Yazdani e Jay Chow. Entre 17 e 22 de fevereiro, os autores coletaram 13.208 imagens geolocalizadas no Instagram em uma área central de Kiev, durante a Revolução Ucraniana. Como resultado, as diversas análises foram publicadas em website e paper, permitindo discutir aspectos como a possibilidade (e particularidades) do discurso político no Instagram, evocação de estilos imagéticos e performáticos de mobilização e sua iconografia.
Os autores citam o trabalho de Georges Perec em Tentativa de esgotamento de um local parisiense ao comparar seu ponto de vista ao do escrito. Se o olhar de Perec era delimitado pelo retângulo da janela do café onde ele sentou-se naqueles três dias, o dos autores, ampliado pelas metodologias das humanidades digitais, pode fazer diferente, indo além em muitos pontos.
“uma vez que substituímos um único ponto de vista humano pelo da mídia social, pudemos esticar nosso enquadramento, para capturar uma área muito maior. Isto nos permitiu observar tanto o infra-ordinário quanto o extraordinário, e reconstruir alguns modos pelos quais interagem” (MANOVICH et al, 2014, p.84)
O trabalho nos lembra novamente que o registro da história sendo feita pode ser realizado de diferentes formas e, sobretudo, descrito de modos inovadores. A conjunção de coleta e processamento de dados com a capacidade (e energia) descritiva são aliados da análise da realidade social. A percepção de tendências e comportamentos, que se modificam e remixam cada vez mais rapidamente, hoje passa por aquela combinação.
Referências Bibliográficas
BECKER, Howard. Georges Perec’s Experiments in Social Description. Ethnography, vol 2, n.1, 2001. http://eth.sagepub.com/content/2/1/63.abstract
ERNER, Guillaume. Sociologia das Tendências. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2015.
MANOVICH, Lev; TIFENTALE, Alise; YAZDANI, Mehrdad; CHOW, Jay.“The Exceptional and the Everyday: 144 Hours in Kyiv” The 2nd Workshop on Big Humanities Data held in conjunction with IEEE Big Data 2014 Conference. (Paper in PDF format.)
PEREC, Georges. As Coisas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo: Editorial Gustavo Gili, 2016 [1975].