Em inglês, a ideia de literacy (literacia) vai além da alfabetização sobre letramento de leitura e escrita. Trata-se da compreensão básica de um determinado campo, esfera de conhecimento ou de prática de modo a permitir que as pessoas vejam a realidade de forma crítica gerando autonomia. O título do documento Advancing Racial Literacy in Tech evoca este sentido, ao propor os necessários avanços da literacia racial na tecnologia, sobretudo em um momento em que a plataformização e algoritmização do mundo cria novas ameaças para grupos minorizados como as populações negras.
O projeto financiado pelo Data & Society, reúne diagnóstico e propostas de referências no tema: Jessie Daniels, uma das principais especialistas mundiais sobre racismo online, autora de livros como Cyber Racism; Mutale Nkonde, analista do Data & Society e uma das responsáveis pelo Algorithmic Accountability Act proposta para a Câmara dos Deputados dos EUA; e Darakhshan Mir, professora de Ciência da Computação na Bucknell University.
O subtítulo do documento evoca uma controvérsia sobre os estudos quanto a algoritmos e as várias linhas de atuação propostas por desenvolvedores, empresas, pesquisadores e afins. As autoras propõem que “ética, diversidade na contratação e treinamento sobre viés implícito não são suficientes”. Para adereçar os diferentes impactos raciais da tecnologia, seria preciso seguir três fundamentos:
- Compreensão intelectual de como racismo estrutural opera em algoritmos, plataformas de mídias sociais e tecnologias ainda não desenvolvidas;
- Inteligência emocional sobre como resolver situações racialmente estressantes em organizações e;
- Compromisso na tomada de ação para reduzir danos a grupos racializados.
As autoras citam diversos casos de racismo algorítmico mapeados por ativistas e pesquisadoras para falar da compreensão intelectual sobre o racismo necessária para que o caminho da literacia racial na tecnologia seja trilhado. Alguns pontos são similares à perspectiva histórica da Teoria Racial Crítica: racismo é um problema atual, não apenas histórico; raça intersecta com classe, gênero e sexualidade; identidades raciais são aprendidas através de práticas sociais; um vocabulário é necessário para discutir raça, racismo e anti-racismo; códigos e práticas raciais precisam ser interpretados com precisão; e “Branquitude” tem um valor simbólico na sociedade.
Seguindo para a inteligência emocional necessária para as organizações, as autoras falam de cinco estágios graduais com quem é confrontado sobre os vieses racistas: Negação, Ausência, Confessional, Confortável e Transformacional. Basicamente esta trilha vai da Negação, o “Não vejo um problema” até o Transformacional, que seria o “Tenho o compromisso de agir para impedir os danos do racismo”. Aqui vejo algo similar. Na divulgação dos primeiros mapeamentos de minha tese tenho sido confrontado geralmente com negação impassível, quando não ataque direto. Então acredito que o debate sobre tecnologias justas deve necessariamente irmanar com o debate sobre raça e racismo no Brasil. Em trabalho recente usei o termo “dupla opacidade” justamente para tratar de como a negação tanto da conversa sobre os impactos sociais da tecnologia quanto sobre o caráter pervasivo do racismo estão ligados.
A seção a seguir fala das barreiras à literacia racial na tecnologia. O primeiro, que também já enfrentei na própria academia, é a noção errônea que “códigos e algoritmos são apenas matemática e matemática não pode discriminar“. Para as autoras isto leva a uma rejeição agressiva sobre os trabalhos que tratam de discriminação algorítmica.
Entre as iniciativas já em curso sobre ética no setor da tecnologia, as autoras identificam três abordagens comuns: investigação dos funis para os profissionais de grupos minoritários; apoio a iniciativas de “diversidade e inclusão”; e teste de vieses implícitos. Mas todas estas abordagens tem suas fragilidades. Vale sublinhar a inclusão de profissionais de grupos racializados como panaceia. Além de não representarem efetivamente sua proporção na população, há outros problemas sobre cultura corporativa e capacidade de transformação, como a Safyia Noble cita em seu livro ao falar do Black Girls Code do Google. As autoras do relatório explicam:
As pessoas na área de tecnologia nos disseram que falar sobre “diversidade e inclusão” é comumente um modo de evitar falra sobre temas raciais diretamente. Ao invés, as pessoas falam sobre “background” ou “experiência” ou “grupos sub-representados”, o que pode ocultar o quão sério é o problema do racismo sistêmico. E, para a pequena porcentagem de pessoas negras e latinas que são contratadas em empresas de tecnologia, elas enfrentam fardos múltiplos de ter de fazer o trabalho de literacia racial para seus colegas, supervisores e cultura corporativa.
Finalizando o relatório, as autoras falam de alguns passos e ações para o futuro. Como criar uma série de vídeo sobre literacia racial; desenvolver uma ferramenta de avaliação; propor currículos para disciplinas em ciência da computação; experimentos e pesquisas sobre literacia racial na tecnologia.
Para finalizar, segue um pequeno resumo do trabalho da Mutale Nkonde sobre o atraso do governo dos EUA em reagir e tentar entender o avanço da inteligência artificial, assim como passos futuros de sua pesquisa como etnografia no congresso para entender o que os times dos deputados e senadores efetivamente sabem sobre o tema:
Baixe o documento em https://racialliteracy.tech