Cosas que, a lo mejor, se pasaron a Picasso (Macanudo)


Essas tirinhas fazem parte de Macanudo, de Liniers. Como o nome já indica diretamente, tratam do famoso pintor espanhol Pablo Picasso, de coisas que podem ter lhe acontecido. Elas têm algumas peculiaridades narrativas e pláticas, que tentarei, sem o perdão do trocadilho, pincelar aqui.

Os requadros, o formato e a disposição dos quadros são característicos. São mais espessos que o habitual, preenchidos de cor, além de serem dispostos com certa distância um dos outros. Logo se percebe a estratégia: são alusões a molduras.

A total compreensão das piadas requer que o leitor possua algum conhecimento de história da arte. Em alguns casos se refere a informações literalmente textuais, como o encontro com Breton e Dalí, noutras é iconográfica, como a aparência de Andy Warhol ou quando ele se vê no espelho de um jeito bem particular. São estas os exemplares mais interessantes. De Mondrian a Guernica, ou sua própria assinatura.

Malvados

Uma tirinha com dois personagens: uma flor chamada Malvadinho e outra chamada Malvado. Logo de cara, a ironia dá o tom da coisa. Sarcasmo, humor negro e piadas mais que politicamente incorretas pipocam (ou florescem?) nessa tirinha, de André Dahmer.

O desenho é bem tosco mesmo. Algumas linhas em preto, branco e cinza e boas idéias fizeram o sucesso inicial. Nas primeiras tiras, os Malvados eram por demais assentados no texto. Mas aos poucos foi ficando mais inventivo. Mesmo a falta de braços dos personagens é motivo de piada em uma tira. Depois de algum tempo, sob a mesma rubrica Os Malvados, André Dahmer criou novos personagens e séries.

Emir Saad é um tirano de algum país distante, provavelmente oriental. Aqui as tirinhas são rudimentarmente coloridas. O ditador é sádico, adora tortura. Mas é explicado: tem pinto pequeno.

Como também não poderia deixar de ser em uma tirinha de humor ácido, também há as piadas com o próprio autor. Passou de piadas do tipo “quadrinista mal-pago e incompreendido” para piadas sexuais com clichês de psicoanálise.

Ziniguistão é uma terra de ninguém. Guerras étnicas e religiosas são o alvo da vez. Em parte das tirinha, uma estratégia interessante. No topo, em caixa alta, texto objetivo, como se fosse uma manchete: “ZINIGUISTÃO, 1994. FANÁTICOS MANTÊM CEM CRIANCINHAS SOB A MIRA DE ARMAS.” Em baixo a piada infame: “Não gosto de violência, mas vou dar um tiro em quem jogar outra bolinha de papel.”

Uma série recente particularmente interessante é Apostólos, A Série. Jesus e seus seguidores são hippies em busca de boa vida (leia-se erva barata).

Macanudo


Macanudo é o nome do mundo das tirinhas criadas pelo artista argentino Liniers. Publicadas no jornal La Nacion, as tirinhas também são disponibilizadas em www.autoliniers.blogspot.com. Quando pus os olhos na primeira tira, foi paixão à primeira vista. Aos poucos, descobri dois diferenciais em relação a outras tiras de que gosto, como Piled Higher and Deeper, Garfield, Dilbert e Mafalda.

O primeiro é a quantidade e peculiaridade de seus personagens. A mais comum é Enriqueta, uma menina que, na companhia de seu urso de pelúcia Madariaga e de um gato de sugestivo nome Fellini, percorre as delícias da infância, liberdade e literatura. Las Verdaderas Aventuras de Liniers é semi auto-biográfico, sobre um coelho antropomórfico quadrinista. Em Lorenzo y Teresita acontecem as pequenas situações cômicas de todo casal. Cosas que, a lo mejor, le pasaron a Picasso traz o pintor espanhol como protagonista brinca com arte e artistas afetados. Algo em torno de duas dúzias de núcleos de personagens ou séries, como Gente que anda por ahí, tiras que giram em torno de peculiaridades humanas. Outro curiosíssimo é o El Misterioso Hombre de Negro. Uma figura enigmática. Misteriosa.

O segundo, e mais fascinante, é a liberdade criativa que Liniers se permite. Além do desenho encantador, o autor sabe do potencial que há naqueles poucos centímetros. Para cada grupo de personagem ou série o autor usa recursos diferentes. Por exemplo, em El Hombre Misterioso de Negro, o requadro é comumente usado como parte do significado. Ocultando algum elemento, geralmente o personagem, o recurso é associado com o “mistério’, que vinha literalmente escrito nas primeiras tiras, e pôde ser dispensado nas seguintes. Em outras ocasiões, o requadro é enfatizado, como na tira de Picasso, que parece estar dentro de molduras. Noutras, o requadro some, mas a disposição dos elementos quase que indica um “requadro invisível”. Nas tiras dos duendes e das ovelhas costuma ser usada a quebra da repetição de certos elementos. A forma, textura ou cor de algum dos elementos em relação aos demais, acompanhado ou não de linguagem escrita, é o essencial dessas tiras. Esses são só alguns dos recursos mais óbvios que o quadrinista usa para não se curvar à comodidade da palavra. A riqueza da tira é enorme, e merece ser alvo de uma reflexão profunda e fundamentada. Talvez eu o faça, mas ainda preciso de muita bagagem para ganhar o visto de entrada.