Algumas ferramentas de monitoramento de mídias sociais líderes mundialmente, como Sysomos e Brandwatch, nasceram em 2006, 2007. Ou seja, sem sequer contar práticas anteriores de estudo mercadológico das conversas nas mídias sociais, temos ao menos 10 anos deste mercado. Tornou-se cotidiano, ordinário. Mesmo grandes agências de publicidade, tipicamente retardatárias em inovação, criaram setores internos de monitoramento de mídias sociais, social listening, social business intelligence, social big data ou qualquer reinvenção de anglicismo em moda.
Além de se estudar limites e possibilidades tecnológicas e metodológicas do campo, urge estudar como a prática de mineração e análise de dados sociais digitais se configurou como um mercado próprio que engendra atividades e gera impacto sobre as pessoas. Helen Kennedy, professora da Universidade de Sheffield, publicou em 2016 o livro Post, Mine, Repeat: Social Media Data Mining Becomes Ordinary com este objetivo.
Os três primeiros capítulos da publicação buscam explicar como a mineração de dados em mídias sociais se tornou cotidiana, ordinária; a importância de estudar como estes dados são construídos e impactam a sociedade; e o que deve nos preocupar sobre a mineração de dados em mídias sociais.
A primeira preocupação é frequentemente mencionada no discurso popular: privacidade. É comum, em alguns meios, a crítica a usuários de plataformas de mídias sociais por não lerem os Termos de Uso ou ainda, ignorarem a possível coleta de dados. A partir de referências bibliográfica e entrevistas com usuários comuns de mídias sociais, Helen Kennedy explica no livro que há diferentes noções do que constitui privacidade:
there is a distinction between social privacy (controlling which people within their networks get access to their information) and institutional privacy (the mining of personal information by social media platforms and other commercial companies) and that social media users’ concerns about controlling their personal information relate to the former, not the latter (KENNEDY, 2016, p.17)
A segunda grande questão é o potencial de se criar mais e mais discriminação e controle social através dos dados nas mídias sociais. Como já escrevi ao falar do direito ao esquecimento e de escores como o Klout, as informações pervasivas sobre as pessoas são usadas por empresas e governos ao tomar decisões que podem impactar profundamente os indivíduos. De empregos a migração, até perfilização de consumo, a
Social media data mining raises serious questions in relation to rights, liberties and social justice, and the fact that the ‘data delirium’ (van Zoonen 2014) is driven by the agendas of big business and big government should trouble those of us who doubt whether these agendas serve the public interest. (KENNEDY, 2016, p.22)
Persiste em alguns meios a ideia de que dados são objetivos. No atual panorama internacional, no qual startups cospem novos produtos diariamente baseados em “inteligência” artificial com pouca ou nenhuma responsabilidade sobre seus impactos sociais, a ideia de “quantificação de tudo” se torna uma meta. Mas quantificação não é um processo de medir o mundo, mas sim de ordená-lo e gerenciá-lo:
Quantification is a process of managing the world, ordering it, not understanding it: what is lost when numbers dominate are the understandings that qualitative sensibilities help us to generate, (KENNEDY, 2016, p.136)
As preocupações metodológicas compõem a terceira preocupação central do livro e estão diretamente relacionadas à quarta, que trata das novas desigualdades de acesso a estes dados. Plataformas como Facebook reúnem trilhões de pontos de dados diários criados pelos usuários no seu uso cotidiano, mas que só a própria empresa tem acesso. Como alertam diversos pesquisadores nos últimos anos (SAVAGE & BURROWS, 2009; MARRES, 2012) testemunhamos uma redistribuição e realocação dos métodos: novos atores tem acesso exclusivo de uma quantidade nunca antes imaginada de dados – para fins também particulares.
Mas onde está a agência dos atores envolvidos? Quem toma as decisões que moldam as práticas? Kennedy vai observar sobretudo a ação dos trabalhadores deste mercado, dos usuários e o conceito de tecno-agência. A partir desta ideia, discorre sobre como as relações de poder se corporificam nas tecnologias que reproduzem e retroalimentam suas próprias razões de existirem.
Como pesquisa primária para o livro, Kennedy realizou entrevistas, acompanhamento, workshops e produção de relatórios junto a oganizações do setor público e do ramo comercial. O quarto e quinto capítulos, respectivamente, se dedicam a descrever as percepções dos profissionais envolvidos com o monitoramento de mídias sociais. Para estudar as organizações do setor público, Kennedy realizou pesquisa-ação durante 6 meses em duas câmaras municipais e um grupo de museus da Inglaterra. Junto a consultores, explorou junto às equipes destas instituições as possibilidades da mineração de dados em mídias sociais e descreveu as questões, problemas e potencialidades vistas pelas organizações.
No capítulo seguinte, focado no ramo comercial, entrevistou em profundidade 14 profissionais de agências e consultorias especializadas em monitoramento e pesquisa em mídias sociais. A pesquisadora explorou as percepções destes profissionais quanto a suas práticas, limites éticos, noções de privacidade e a dualidade entre benefícios/malefícios para as populações monitoradas. Além de diagnosticar as tentativas de justificação das práticas através de noções limitadas – e não baseadas em fatos – do que os usuários finais acham, percebeu também pouco conhecimento sobre o que efetivamente é feito com os dados, informações e insights depois que os entregam em relatórios.
Esta lacuna de informação fornece o gancho para o sexto capítulo, com o título literal What Happens to Mined Social Media Data? (O que acontece com os dados minerados de mídias sociais?). Também através de entrevistas, a pesquisadora falou com universidades, organizações de mídia, câmaras municipais, museus e ONGs. Entre os conceitos derivados das entrevistas, merece particular destaque a ideia de “Evangelismo de Dados” e o “Fetichismo dos Milhares“, através do qual Kennedy explica como parte dos profissionais entrevistados buscam determinados indicadores não para realizar ações concretas, mas para legitimar suas decisões – independente dos insights possivelmente (e frequentemente ausentes) gerados.
No capítulo seguinte, sobre preocupações dos usuários quanto a estas práticas, a autora oferece uma percepção que tenho observado nos últimos anos sobre o léxico envolvido na área. Segundo Kennedy:
By the time of writing this chapter in 2015, the term ‘social media monitoring’ is much less widely used, perhaps because of the surveillant connotations of the word ‘monitoring’. I use these and other terms (‘insights’, ‘intelligence’, ‘monitoring’, ‘analytics’, ‘data mining’) interchangeably here to reflect company language, conscious that new terms may come into usage in the time between writing and publishing the book. (KENNEDY, 2016, p. 160)
Essa mudança semântica tenta deixar de lado o aspecto vigilantista que está no cerne do mercado de monitoramento de mídias sociais. Kennedy faz uma revisão dos relativamente raros estudos sobre percepção dos usuários quanto a práticas de monitoramento de seus dados e descobre, a partir de grupos focais realizados por sua equipe, que usuários da Inglaterra, Espanha e Noruega possuem ideias bem diversas do que significa “ser monitorado”. De modo geral, a maior parte dos grupos estudados (com exceção dos profissionais de marketing): não sabem das possibilidades concretas de monitoramento de mídias sociais; não conhece os termos de uso das plataformas; e bom número tem uma visão dos limites do monitoramento baseado na ideia de “uso justo” (fairness) dos dados que pode variar muito e, definitivamente, não corresponde ao que plataformas ou analistas fazem.
Nessa relação entre usuários e profissionais, Kennedy fala de uma “flexibilidade interpretativa“:
We might characterise the ethics of commercial social media data mining as being in a state of interpretative flexibility, a term used within Science and Technology Studies (STS) to characterise socio-technical assemblages for which a range of meanings exist, whose definition and use are still under negotiation (KENNEDY, 2016, p. 192)
O oitavo capítulo busca revisar e entender potenciais de se “fazer o bem com os dados”. Inicia com uma excelente revisão do que está sendo feito mundialmente (no mundo anglófilo, na verdade) sobre uso de dados em mídias sociais para pesquisa científica. Em seguida, explora o ativismo de dados e seu estado da arte em projetos proativos e reativos.
Como conclusão, o nono capítulo revisa as novas “relações de dados” na contemporaneidade, onde o desejo pelos números e a dataficação são pervasivas. A quantificação do qualitativo traz em si o risco de transformar relações sociais e de poder em “caixas pretas”:
In datafied times, what was once qualitative is now measured quantitatively, so numbers are desired in relation to aspects of life previously the domain of the qualitative. This quantification of the qualitative should concern us because of what is lost when numbers are assigned such power, when numbers become cultural objects, and take on a new force. (KENNEDY, 2016, p. 227)
Assim, é preciso seguir os métodos através dos meios na medida em que evoluem e se transformam, como a autora propõe a partir das reflexões do Richard Rogers:
Follow the methods of the medium as they evolve, learn from how the dominant devices treat natively digital objects, and think along with those object treatments and devices so as to recombine or build on top of them. (Rogers 2013, p. 5) (KENNEDY, 2016, p. 289)
Antes de procurar resultados e conclusões definitivas – que nunca as foram -, devemos usar o pensamento sobre métodos para entender a própria indeterminância das plataformas em seu âmago.
social researchers should embrace their under-determinacy. (KENNEDY, 2016, p. 299)
Referências
KENNEDY, Helen. Post, Mine, Repeat. Ebook: Palgrave Macmillan, 2016.
MARRES, Noortje. The redistribution of methods: on intervention in digital social research, broadly conceived. In: Sociological Review, vol. 60, s. 1, 2012. pp. 139-165.
SAVAGE, Mike; BURROWS, Mike. Some Further Reflections on the Coming Crisis of Empirical Sociology. Sociology, vol. 43, n. 4, 2009. pp. 765–775
ROGERS, Richard. Digital Methods. Londres: The MIT Press, 2013.