Não canso de repetir, infelizmente, que o maior problema de grande parte dos analistas ou jornalistas do mercado da comunicação é a falta de atenção à história. Fala-se de “novidades” que não o são, “primeira vez” ou rupturas que não tem nada de novo. São explicitamente repetições ou cópias de coisas que já aconteceram ou, simplesmente, uma nova manifestação de comportamentos, affordances ou tecnologias que nos acompanham há tempos.
Na minha já tradicional “lista de livros para ler no ano” (que faço desde 2009), recomendei para 2014 o livro The Culture of Connectivity: a critical history of social media. É um livro de 2013 escrito por Jose van Dijck, pesquisadora de Amsterdam que escreveu também, entre outros trabalhos, Mediated Memories in the Digital Age, inspiração importante para minha dissertação.
Dijck se baseia em duas linhas teóricas para fazer esta história crítica das mídias sociais, a Teoria Ator-Rede e a Economia Política da Comunicação. A primeira, que está em voga e crescimento na comunicação, especialmente em cibercultura, propõe uma quebra ontológica e metodológica na relação entre os homens e seus objetos de estudo. Para a Teoria Ator-Rede, o social não é algo dado, mas construído nas relações entre actantes, sejam humanos ou não-humanos. Não se deve, portanto, usar o “social” para explicar alguma coisa, mas sim “explicar o social” ao se descrever as relações entre as coisas em dinâmicas como mediação, intermediação, pontualização e “abertura de caixa preta”. Quando falamos de mídias sociais, então, temos de abrir seus componentes:
The first [Actor-Network Theory] helps to disassemble microsystems. By taking apart single platforms into their constitutive components, we may combine the perspectives on platforms as techno-cultural constructs and as organized socioeconomic structures. But disassembling platforms is not enough: we also need to reassemble the ecosystem of interoperating platforms in order to recognize which norms and mechanisms undergird the construction of sociality and creativity.
Junto à Teoria Ator-Rede, é necessário também observar as relações de força (como relações econômicas) entre os atores que as compões. Por isto,
Proponents of a political economy approach choose organizational (infra) structures as their main focus: they regard platforms and digital networks as manifestations of power relationships between institutional producers and individual consumers.
A partir destas assunções, o livro vai se debruçar sobre as plataformas Facebook, Twitter, Flickr, YouTube e Wikipedia. A importância de observar as várias plataformas é explicada no trecho abaixo:
All platforms combined constitute what I call the ecosystem of connective media—a system that nourishes and, in turn, is nourished by social and cultural norms that simultaneously evolve in our everyday world. Each microsystem is sensitive to changes in other parts of the ecosystem: if Facebook changes its interface settings, Google reacts by tweaking its artillery of platforms; if participation in Wikipedia should wane, Google’s algorithmic remedies could work wonders. It is important to map convolutions in this first formative stage of connective media’s growth because it may teach us about current and future distribution of powers.
Em cada uma destas plataformas, alguns pontos particulares são observados durante a descrição das suas trajetórias desde a criação até as atuais polêmicas. São observadas a Tecnologia, Usuários, Conteúdo e Forma Cultural, Ownership, Governança, Modelos de Negócio e outros itens relevantes.
Ao tratar do Facebook, por exemplo, Jose van Dijck se debruça muito bem sobre a dualidade entre os conceitos de “connectedness” e “connectivity”. A missão da empresa e como ela se vende enfatiza a “connectivity” e seus valores positivos.
Zuckerberg deploys a sort of newspeak when claiming that technology merely enables or facilitates social activities; however, “making the Web social” in reality means “making sociality technical.” Sociality coded by technology renders people’s activities formal, manageable, and manipulable, enabling platforms to engineer the sociality in people’s everyday routines.
Mas a “connectedness” é o que realmente importa para o Facebook. Tecnologia, normas e modelos de negócio são moldados para que o Facebook se torne um “ponto obrigatório de passagem” no sistema midiático contemporâneo. Quanto mais os usuários estão no Facebook e usando seus recursos como APIs, logins e etc, são mais pontos de dados conectados entre si para gerar possibilidades de perfilização e rentabilizar o negócio publicitário.
Ao tratar do Twitter, um foco passa a ser a construção do quê, afinal de contas, é a plataforma. A evolução ao longo de seus anos mostrou como uma mídia social pode ser reapropriada e co-construída pelos seus usuários. Entre conversação ou fluxo de informação, as diferentes aplicações do Twitter ainda desafiam seus usuários e criadores. É uma plataforma que leva ao máximo a “flexibilidade interpretativa”:
Social constructivists would consider the platform’s development to be a stage of “interpretive flexibility”: a stage when a technology is still in flux and various, sometimes contradictory, interpretations are wagered before stabilization is reached (Bijker 1995; Pinch and Bijker 1984; Doherty, Coombs and Loan-Clarke 2006).
Outro ponto fascinante – e que interessa em especial os leitores deste blog, é o uso do Twitter como um “sensor” da sociedade – e até da natureza.
Researchers tested Twitter’s effectiveness as a “social sensor” for real-time events, such as accidents or earthquakes, which could be measured almost instantly by tracking the tagged trends on Twitter (Sakaki, Okazaki, and Matsuo 2010). In addition, academics examined Twitter’s potential as an instrument for “sentiment analysis” and “opinion mining” (Diakopoulos and Shamma 2010; Pak and Paroubek 2010) and for measuring the public mood with the help of “real-time analytics” (Bollen, Mao, and Pepe 2010).
Sobre o YouTube, a dicotomia “mídia de massa” e “mídia alternativa” é descrita, pois foi a primeira chave interpretativa durante a popularização da plataforma. Mas, ao longo do tempo, com pressões econômicas (não só de organizações, mas dos próprios usuários) somadas a desenvolvimentos tecnológicos, que fazem o YouTube hoje ser tão veloz e bem definido quanto TV tradicional, hoje o YouTube reproduz os sistemas midiáticos audiovisuais. Com características particulares, é claro, mas a ideia de “mídia alternativa” é minoritária hoje.
Ao falar do Flickr, o livro me apresentou vários comportamentos em sua história que eu não conhecia, por ser uma plataforma pouco utilizada no Brasil. O capítulo gira especialmente em torno dos conflitos dos diversos tipos de usuários – fotógrafos profissionais e amadores entre os mais engajados – com a definição do que é o Flickr e suas funcionalidades e regras quando foi comprado pelo Yahoo.
O capítulo sobre Wikipedia discute a colaboração e as lutas em torno de construções de consenso. Como cada artigo é uma produção de muitas mãos, a auto-regulação entre editores e usuários comuns força os limites entre democracia e burocracia, para manter a plataforma fiel a seus objetivos de abertura, confiabilidade e imparcialidade. Também é particularmente interessante o papel dos robôs que criam e editam artigos de forma automatizada: alguns deles superam a qualidade de editores humanos, avaliados em testes cegos.
Dijck também trata da reformulação da pesquisa acadêmica atual que, hoje, tem enormes possibilidades com as mídias sociais, mas que não podem ser aproveitadas pela academia tradicional, uma vez que as massas de dados em tempo real sobre a sociedade estão, em grande parte, nas mãos destas plataformas (recomendo ver também Manovich e Marres sobre o tema).
Connective media companies have an unfair competitive edge over (public) researchers when it comes to the availability and accessibility of Big Data for the assessment and interpretation of social and other trends, which is key to the production of knowledge. It is imaginable that scientists in the future will be dependent on commercial processing firms for obtaining access to social data.
Por fim, entre as conclusões, Dijck se posiciona sobre o velho debate em torno da computação social:
The ecosystem of connective media does not reflect social norms; interconnected platforms engineer sociality, using real-life processes of normative behavior (peer pressure) as a model for and an object of manipulation (popularity ranking).
Em resumo, é um livro necessário para profissionais e estudiosos das mídias sociais, especialmente para aqueles que teimam em não “olhar para trás“.
Muito bom resumo Tarcízio! Fiquei interessado em ler.
Uma dúvida em particular na questão do YouTube: você diria que o Vimeo hoje ocuparia esse espaço de “mídia alternativa”? Aliás, como a autora estabelece a diferenciação entre mídia tradicional e alternativa?
Interessante. Fiz minha tese de doutorado sobre a wikipédia considerando-a como um ambiente construído discursivamente. Como metodologia usei a cartografia das controvérsias, de Bruno Latour, e para provar a construção discursiva de argumentos o aporte veio de Jurgen Habermas.