Colonialismo de dados é fruto e arma da supremacia branca

[O texto abaixo é a adaptação de respostas a uma entrevista para reportagem sobre colonialismo de dados. Como habitual, todas menções à Europa, branquitude e supremacia branca nas respostas foram suprimidas da reportagem final. Testemunhamos em torno do mundo um apagamento do colonialismo “histórico” na formatação das condições para emergência das big tech e também o apagamento de como as colonialidades do poder, do ser e do saber se relacionam com tecnologia na distribuição de hierarquias de humanidade nas dominações globais.]

Práticas de extração e processamento de dados reproduzem fluxos de apropriação de capital e epistemes típicas de sanhas coloniais que moldaram o mundo, em especial em torno do Atlântico. O domínio de meios informacionais de circulação de dados é realizado através da plataformização de mais e mais esferas sociais através da datificação. Comunicação e esfera pública centrada nas mídias sociais, trocas financeiras de serviços centradas em aplicativos mobile e mesmo trocas afetivo-sexuais são registradas e monetizadas em softwares dominados por grupos dominantes que tem a capacidade de selecionar, criar, adquirir ou copiar serviços de startups que se destacam nos negócios da tecnologia.

Quando o capital financeiro global consegue realizar dumping em países dominados pelas potências europeias e EUA, mercados e indústrias locais são fragilizados graças ao controle das trocas realizadas nas plataformas. Dos aplicativos de transporte até tecnologias biométricas, passando por plataformas de mídias sociais, o colonialismo de dados reproduz a dominação dos fluxos e trocas em favor dos grandes centros e de grupos demográficos específicos quanto a raça, classe e gênero. O trabalho gratuito ou precarizado de centenas de milhões em torno do mundo desemboca, ao fim e ao cabo, na concentração de recursos dos negócios bilionários da tecnologia que se reinventaram para se apresentar a público como uma miríade de milhares de marcas ou, mesmo, pela ficção da “economia compartilhada” que oculta tal concentração.

Levando os fluxos de interesse em conta, com certeza a articulação pela produção intelectual e práxis sócio-política descolonial é uma necessidade para o avanço das ciências e soberania epistemológica do país, mas em grande medida o fluxo de ideias sobre algumas chaves teórico-conceituais em torno do colonialismo de dados reproduz a direção Norte-Sul. Uma agenda de pesquisa brasileira que se coloca voluntariamente como “à margem” dos centros passa a reproduzir um olhar eurocêntrico sobre sua produção. Ao consumir de forma assimétrica as produções europeias sobre caminhos descoloniais ou, ainda, abarcar a ideia de um pós-colonial, corremos o risco de produzir, literalmente, para “inglês ver”. Acredito na possibilidade de intensificação de articulações Sul-Sul que promovam a conexão do Brasil com a diversidade da América Latina e da África para conexões intelectuais que desenvolvam imaginários que não busquem a chancela eurocêntrica.

Minha pesquisa atual especificamente gira em torno do conceito de racismo algorítmico, que o modo pelo qual a disposição de tecnologias e imaginários sociotécnicos em um mundo moldado pela supremacia branca fortalece a ordenação racializada de epistemes, recursos, espaço e violência em detrimento de grupos racializados pela branquitude detentora das epistemologias e capitais hegemônicos que moldam o horizonte de ações da inteligência artificial em sistemas algorítmicos.

As práticas em torno da base de imagens etiquetadas ImageNet formam um dos exemplos mais loquazes sobre como o colonialismo de dados molda práticas e modelos que ganham incrementalmente camadas de opacidade até o ponto de serem tomados como naturais e promovem algoritmicamente o racismo. Esta base de imagens possui milhões de fotografias extraídas sem consentimento através de web scraping em buscadores. Foi etiquetada – ou seja, marcada com categorias para permitir o aprendizado de máquina – sobretudo através de trabalho do modelo “crowdsourced” realizado por profissionais precarizados em países como Filipinas e Índia. As imagens eram provenientes em sua absoluta maioria de países europeus e EUA, hipervisibilizando pessoas e ambientes destes países e invisibilizando estéticas do Sul Global. A partir deste treinamento de máquina, competições de construção de modelos algorítmicos para identificação de imagens foram realizados por centros científicos dos países afluentes. Como resultado, isto significou a reprodução opaca de modelos algorítmicos de interpretação de imagens em visão computacional que apaga ou interpreta erroneamente pessoas e ambientes não-eurocêntricos ao mesmo tempo que transferiu trabalho e recursos reproduzíveis e escaláveis para os centros afluentes da tecnologia global.

A própria existência de um oligopólio tecnológico que domina grande fatia do tempo, produção intelectual e comunicacional dos cidadãos e o valor financeiro decorrente é um empecilho inerente ao uso construtivo da internet para o bem estar social. Avança a discussão sobre a necessidade de desmembrar oligopólios do chamado FAANG – Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Alphabet (a detentora do Google). Cada uma dessas corporações possui amplos conglomerados de empresas em setores como comunicação, mídia, inteligência artificial, varejo, infraestrutura e muitos outros, podendo cruzar dados de cada a seu bel-prazer e desenvolver modelos de ingerência nas esferas sociais, econômicas e políticas.

Neste sentido, vimos na última década como tal oligopólio se posicionou em um local privilegiado para interpretação da realidade social através da promoção da ideologia de mensuração científica de big data. Com centenas de cientistas, contratados a partir das melhores universidades do mundo, engajados em pesquisa para fins privados, grupos como Facebook e Alphabet acabaram por ter capacidade de interferência no mundo maior do que a de muitos Estados nacionais. Quando falamos de pesquisa científica, temos um risco de diluição do potencial transformador e investigativo de projetos possibilitados por grants financeiros ou acesso apenas a dados que as plataformas julgam confortável compartilhar. Precisamos defender com todas as forças a independência das universidades a esta ingerência privada e alheia aos interesses nacionais.