O livro Desvendando os Quadrinhos é uma ótima porta de entrada para quem quer saber mais sobre a “linguagem” da nona arte. O livro de Scott McCloud fala de vários aspectos dos quadrinhos, como o desenho, a narrativa, o tempo, cores e da relação texto-imagem. O diferencial da obra é que são “quadrinhos sobre quadrinhos”. Sim, não é um texto acadêmico convencional, são quadrinhos nos quais o autor aparece e é protagonista de uma aventura que busca definir o que afinal, são quadrinhos e sua linguagem.Aqui apresento o fichamento que fiz do capítulo três, “Usando a Sarjeta”, um dos mais interessantes, no qual o autor postula que os quadrinhos são a arte narrativa que mais exige do leitor, uma vez que seu tipo de “conclusão” é mais consciente e voluntário. É um livro que vale a pena adquirir.
McCLOUD, Scott. “Usando a sarjeta”. In: Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books (1995): pp. 60,93.
A percepção não se dá no ‘aqui-agora’. As coisas existem mesmo sem que os sentidos estejam debruçados sobre. O mundo visível é fragmentado, incompleto. A construção da realidade é baseada em experiência anterior. No caso da atribuição de sentido a figuras com formas elementares, como o círculo, a linha e dois pontos do smile, é uma conclusão. No caso da fotografia, os minúsculos grãos juntos dão sensação de uniformidade. No cinema, com a persistência da imagem na retina, existe a sensação de movimento. Na TV, são os pontos de luz.
Segundo o autor, os quadrinhos são “um meio de comunicação como nenhum outro… um meio onde o público é colaborador consciente e voluntário, e a conclusão é o agente de mudança, tempo e movimento.” (p.65)
McCloud explica o que é a sarjeta, o espaço em branco entre os quadrinhos. É nesse espaço que a imaginação do leitor extrai sentido entre as vinhetas. “Nada é visto entre dois quadros, mas a experiência indica que deve ter alguma coisa lá.” (p.67) Os quadrinhos são fragmentos de tempo e espaço, a conclusão realizada pelo leitor faz com que esses fragmentos se tornem uma realidade única. O autor usa a alusão relacionando a iconografia visual a um vocabulário, enquanto a conclusão seria a gramática. Ao contrário do que acontece na mídia eletrônica, nos quadrinhos a conclusão é voluntária.
O autor usa um exemplo de dois quadros. No primeiro é mostrado alguém prestes a desferir um golpe de machado em outrem. O segundo mostra o céu noturno de uma cidade, cortado por um grito. Uma vez que a ação do assassinato não é mostrada em imagem, o autor diz que “matar um homem entre os quadros significa condená-lo a milhares de mortes”. Cada leitor vai construir a ação do assassinato de um jeito diferente.
A partir disso, McCloud fala que os quadrinhos criam uma “intimidade” com o leitor só superada pela palavra escrita. É um “pacto” entre o criador e o público, por meio da arte e da habilidade do primeiro. A arte estaria relacionada ao aspecto plástico do desenho, enquanto a habilidade é investigada sobre os tipos de transições quadro-a-quadro. O primeiro tipo de transição é a de transição momento-a-momento. Há pouca conclusão envolvida, uma vez que o segundo quadro representa o mesmo objeto, pouquíssimo tempo depois. A segunda é a de ação-pra-ação. O que acontece entre duas ações correlacionadas de um mesmo objeto, no mesmo espaço, fica na sarjeta. Na transição tema-a-tema há um grau de envolvimento maior, em que a narrativa permanece dentro de uma mesma cena ou idéia (o exemplo do assassinato se encaixaria aqui). O quarto tipo é a transição cena-a-cena, nas quais distâncias maiores de tempo e espaço acontecem. A transição aspecto-pra-aspecto mostra vários aspectos de um mesmo objeto. E a última, a non-sequitur, é o tipo de transição que não oferece nenhuma sequência lógica. Apesar de usar a palavra lógica, o autor esclarece que não pensa que existam realmente sequências de quadros que não possuam conexão entre si. Sempre haverá um sentido atribuído, por mais diferente que seja.
Nas páginas seguintes o autor detalha uma experiência estatística que realizou comparando autores e “escolas” diferentes de quadrinhos. O primeiro analisado é Jack Kirby. As transições de ação, tema e cena, nessa ordem, são as únicas que aparecem no trabalho do autor, sendo que a primeira é muito mais freqüente. Ao comparar com o trabalho de Hergé, descobre que a proporção é semelhante e se pergunta se existe uma proporção universal. Mostra outros gráficos de autores americanos e europeus, que exibem uma proporção ainda muito parecida e predominância dos três tipos predominantes em Kirby e Hergé.
Ao considerar a história em quadrinhos como uma série de eventos interligados, McCloud explica essa predominância dos tipos 2 a 4 por mostrarem os eventos de forma eficiente. A transição de ação-pra-ação entre dois quadros pode resumir ou condensar o que uma sequência de momento-a-momento levaria cinco ou seis. O quinto tipo, por ser descritivo, seria um em que não “acontece nada”. E o sexto não se preocupa com os eventos ou narrativa direta.
Para conferir a constância dessa regra, o autor mostra uma tabela com gráficos de transições de obras experimentais de Art Spielgeman. Em alguns, há uma classe completa de transições, que é explicada pelo tipo de história e temas não-convencionais. Finalmente, para conferir se a predominância dos tipos 2 a 4 é natural a narrativas diretas, McCloud analisa os tipos de transições de Osamu Tezuka.
O gráfico mostra os seis primeiros tipos de transição. O segundo ainda é o mais freqüente, mas acompanhado de perto por tema-a-tema, e aspecto-pra-aspecto tem ocorrência significativa. O quinto tipo é frequente nos quadrinhos japoneses. Geralmente é usado para estabelecer a sensação de um clima ou lugar. Não são aspectos no tempo, mas sim em um mesmo momento, a partir dos fragmentos dispersos.
Examinando outros autores japoneses, o aspecto-pra-aspecto continua tendo alta incidência. A princípio, um fator pode explicar o fenômeno. O tamanho dos quadrinhos japoneses, com muito mais páginas que os comics americanos ou os álbuns europeus, permitem que páginas inteiras sejam dedicadas ao estabelecimento de um clima para cena.
O tamanho não é o único fator, muito menos o principal. O autor sugere que essa particularidade se deve à ênfase que a cultura japonesa dá ao processo, em estruturas labirínticas ou cíclicas, ao contrário do padrão ocidental de ir direto ao objetivo. A arte japonesa é uma arte de
intervalos. O que não está na obra, as escolhas e elipses, também são parte da obra, assim como a figura e o fundo são constituintes de uma imagem.
Em seguida, o autor mostra uma história contada em 52 quadros. Depois, a mesma história em 10 e 04 quadros, aumentando a economia gradativamente. Explica que a arte dos quadrinhos é tão substrativa quanto aditiva. O equilíbrio é indispensável. E essa economia é possível porque os criadores pressupõem a experiência do leitor. Novamente o exemplo clássico dos quadros [olho fechado]>[olho aberto].
Fala do controle que o autor pode ter. No caso da disposição dos quadros, podem ocorrer equívocos, e quando a conclusão entre os quadros é mais intensa, as interpretações possíveis tornam-se mais numerosas. Deixa claro que os artistas podem montar transições ambíguas ou quadros que só mostram uma parte da cena de propósito.
O autor revisa a conclusão obtida que a mente funciona como intermediária preenchendo as lacunas entre os quadros e declara que não é só isso o que acontece na leitura de quadrino. Fala novamente da transição aspecto-para-aspecto para tratar da referência aos outros quatro sentidos. Diz que dentro de um único quadro, o artista só pode exprimir informações visuais, e que na relação entre os quadros os outros sentidos são envolvidos.
Menciona o capítulo dois e se pergunta se o tipo de desenho afeta a conclusão. Tomando como verdadeiro o pressuposto de que os desenhos chamados de “‘cartunescos” existem como conceitos do leitor, uma sequência de quadros desse tipo flui com mais facilidade. Por outro lado, as imagens mais “realísticas” são menos fluidas porque se assemelham mais a “uma série de imagens congeladas”. E, por fim, os desenhos mais abstratos, “nos quadrinhos que se preocupam mais com o plano da imagem”, são os que exigem um maior grau de esforço para se chegar à conclusão.
Para o autor, os quadrinhos é o tipo de arte que mais exige do leitor, ao mesmo tempo que é a que mais oferece. É uma arte do “vísivel e do invisível”. Por isso rejeita a noção de que os quadrinhos são uma mistura entre desenho e literatura.
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