A Função Social do Design: realidades e utopias

O texto a seguir foi postado originalmente no diseñoiberamericano.com. O site “es un proyecto de gestión del conocimiento en diseño cuyo objetivo es el de propiciar la interacción entre las personas de los países iberoamericanos desde una perspectiva amplia y participativa, mediante el lenguaje del diseño, creando espacios para que el conocimiento circule, fomentando la reflexión, el análisis y el impulso a los procesos de creación, formación e innovación.”
Abaixo temos uma tradução, autorizada, feita por mim, do texto da video-conferência oferecida por Norberto Chaves no evento “Diseño em Sociedad” que foi realizado no final do ano passado na Universidade do Valle de Cali, Colômbia. O original pode ser acessado diretamente aqui.

A Função Social do Design: realidades e utopias, por Norberto Chaves

Premissas

1. A frequência com que se apresenta o debate sobre ‘a função social do design” tem feito que esta frase adquira um caráter de verdadeira categoria ideológica da disciplina.
2. O mero formular desta problemática leva ímplicita uma tomada de posição. Quem as formulam, só por fazê-lo, a reivindicam: atribuem de antemão para a discplina uma missão humanitária: a frase contêm, latente, uma afirmativa: “o design tem uma função social”.
3. E a reiteração desta reivindicação leva, também implícita, outra afirmação: o reconhecimento que o Design, na verdade, não cumpre esse compromisso supostamente inerente ao seu próprio conceito.
4. Quando se supera toda tomada de posição a priori acerca desta problemática e a analisa com objetividade, veremos que a resposta não apresenta dificuldade alguma, não implica nenhum desafio intelectual.
5. O interessante da dita insistência não é tanto a resposta que se possa dar ao tema, mas as origens do dilema, seu caráter de uma patologia profissional.

Proposta

Para abordar o tema da “função social do design” resulta indispensável fazer duas declarações de partida:
a) Definir se por “função social” nos referimos à incidência geral do design na sociedade ou se nos referimos a um determinado tipo de incidência: a animada por fins solidários ou humanitários.
b) Definir se, ao abordar este tema, consideraremos o design tal e como se manifesta na sociedade real, ou se tentaremos fazer uma proposta alternativa, ou seja, formular um “dever ser” do design.

1. O design só tem função social
Se nos referimos à função social em sentido amplo e ao design em sua realidade atual, esta prática em todas suas manifestações tem uma indiscutível função social: tudo o que o design produz é dirigido à sociedade e incide poderosamente sobre ela, para o bem em alguns casos e para o mal em outros.

2. O design tem escassa função social
Se continuamos a nos referir ao design como uma prática real e atual, mas por “função social” nos restringimos á sua acepção humanista, temos que reconhecer que esta função só se cumpre marginalmente. O design só pode cumprir uma função humanitária ali onde existam atores socio-econômicos (“clientes”) que assumam um compromisso social real, não cínico.

Estes atores são raros. Ou carecem de fundos (o que é o mesmo). A economia e o mercado neoliberal – contexto real e predominante de la práctica do design – possuem um caráter abertamente antisocial e, por tanto, dificultam aquela função.

Somente um setor muito minoritário de designers conseguirá trabalho no campo efetivamente social e, ainda assim, com remunerações muito baixas, em regimes de voluntariado.

Em uma economia de mercado não se pode falar de “função social” como característica essencial do design. Neste modelo de sociedade a “função social do design” não passa de ser um desideratum, uma pura manifestação de desejos, quando não uma fantasia compensatória de culpa.

A função social, antisocial ou neutra de qualquer profissão não a determina, e sim o sistema social em que se inscreve. Não está implícita na disciplina (que pode tê-la ou não tê-la): a atribui de fora. E não é o designer quem pode realizá-la, e sim o cliente real, o que contrata e paga o serviço e o põe em uso. Só há função social onde o cliente tenha uma missão social.

Em um modelo de sociedade estruturalmente injusta como a vigente, a função social do design e de qualquer profissão está bloqueada pelos interesses prioritários do mercado. Esquecido este “detalhe”, toda referência à “função social” cai em contradição.

3. O design poderia ter uma função social
Se nos mantemos dentro daquela acepção humanista de “função social”; mas, a contrapelo da realidade nos animamos a propor que o design assuma essa função de um modo sistemático, não anedótico, temos que ingressar no terreno da proposta alternativa. Conseqüentemente, devemos assumir o compromisso intelectual e ético de denunciar as razões pelas quais dita função é atualmente marginal e assinalar as condições que teriam de dar-se para que se cumpra plenamente.

Não há dúvida que, para que os designers possam trabalhar séria e continuamente a serviço das necessidades da sociedade, e não do mero mercado, é indispensável que prosperem os projetos política e economicamente transformadores, ou seja: os populares. O designer preocupado com sua função social deve, enquanto sujeito político, apoiar sem reservas todos os movimentos que defendam as causas sociais e não esperar, candidamente, do sistema imperante uma função alheia a sua natureza e objetivos.

Corolário

A apresentação permanente e insistente desta problemática e sua situação de irresoluta não é produto de sua complexidade, mas sintoma de um “mal-estar na cultura do design”, de certa insatisfação do profissional que pretende canalizar seu compromisso social através de uma profissão que resiste a acompanhá-lo.

Essa problemática tarda em resolver-se pois parte de uma contradição: exigir compromisso social a uma profissão solidamente articulada com o mercado e a sociedade de consumo. Se trata de uma contradição própria da classe média: os privilégios de que gozam sobre as classes operárias não os deixam ver – nem querem ver – seu caráter de classe explorada. E o caráter alienado de seu trabalho.

O profissional quer “pôr seu trabalho ao serviço de uma função social” apesar de não poder fazê-lo sozinho. Quer salvar a sociedade através do design sem reconhecer que esta profissão existe graças a um modelo socio-econômico que a configurou como tal. E que
majoritariamente a pôs, direta ou indiretamente, a serviço do mercado de consumo.